Em 2018, o Porta dos Fundos lançou uma série bastante engraçada e profética dentro de seu canal, intitulada “Polêmica da semana”. Os vídeos reproduziam um programa televisivo fictício, em que um tema “polêmico” era debatido por duas pessoas: de um lado, um especialista num assunto, repleto de títulos e credenciais; noutro, um comentarista de notícias aleatório. No quadro, sempre hilário (ainda que muito contundente), o especialista tinha sua leitura posta em equivalência ao do sujeito que se opunha a ele: ambos recebiam o mesmo tempo, o mesmo tempo de réplica e tréplica. O especialista, obviamente, sustentava sua fala em argumentos científicos. O comentarista usava artifícios do não-diálogo: analogias esdrúxulas, silenciamento do outro, posturas infantis. Ao fim, o mediador encerrava o programa com uma síntese: “então é isso, nem tanto ao mar, nem tanto à terra”.
Uma das notícias da televisão mais repercutidas essa semana diz respeito aos conflitos e finalmente à saída da advogada Gabriela Prioli do programa O grande debate, atração do canal de TV a pago CNN, emissora recém estreada no Brasil. Gabriela (que é advogada criminalista e professora universitária) era uma das debatedoras fixas do programa, mediado por Reinaldo Gottino, e havia angariando muito destaque nas redes sociais, sendo bastante elogiada por boa parte dessa audiência – é bem fácil encontrar vídeos e tweets que dizem que Gabriela “jantou” seus interlocutores, expressão informal que sugere que a debatedora venceu uma disputa argumentativa e humilhou o outro.
No domingo (29 de março), uma notícia veiculada nos principais veículos de comunicação do país anunciou sua saída do programa, por decisão própria, manifesta em suas redes sociais. Ela escreveu: “O meu compromisso é com um debate racional, prospectivo, informativo e respeitoso. Não consigo atingir o meu objetivo se for constrangida e não posso seguir participando do debate sem que a convicção sobre a gravidade do constrangimento não seja só minha, mas de todos os envolvidos, na frente e atrás das câmeras”.
Gabriela Prioli, apesar de sua crescente visibilidade, resolveu sair do programa (se sairá da CNN, é algo que saberemos nos próximos dias), no qual debatia diariamente com nomes que são reconhecidos como “celebridades” do pensamento conservador: o bacharel em Direito Caio Coppolla, famoso como comentarista político da rádio Jovem Pan, e Tomé Abduch, líder um movimento de extrema-direita chamado NasRuas. Nestas duas semanas, Gabriela debateu com eles e se viu obrigada a contrapor achismos e frases feitas com argumentos baseados em estudos científicos.
Se em certos momentos históricos, o princípio da imparcialidade nos protegeu do mau jornalismo, hoje ele tem sido usado para promover à fama, num suposto esforço de isenção, visões que não poderiam ser postas em equivalência.
Qualquer jornalista sabe que uma das primeiras coisas que se aprende na faculdade é que um princípio básico da profissão é “ouvir os dois lados”. O fundamento deste princípio poderia ser explicado assim: se o jornalismo, em sua essência, deve buscar conhecer a verdade, para além de qualquer interesse ou mediação humana, é preciso a todo custo ser imparcial. E a forma mais correta de fazer visto é ouvir os tais dois lados (não deixo de destacar aqui que há uma evidente redução da realidade quando ela é assumida em “dois lados”): os contra e os a favor, os que acham A e o que defendem B. Os que defendem que a terra é plana e os que confiam na história da ciência e que Galileu Galilei estava certo.
Se, em certos momentos históricos, este princípio nos protegeu do mau jornalismo, hoje ele tem sido usado para promover à fama, num suposto esforço de isenção, visões que não poderiam ser postas em equivalência. Como muitos dizem por aí, a TV, ao se adequar ao tal princípio da equanimidade, “dá palco para maluco”. É, em certa medida, o que O grande debate – cujo nome grandiloquente já dá pistas sobre sua intenção de repercussão midiática, para além da televisão – pretende fazer.
Dia desses, vi uma charge bem engraçada. Nela, dois homens veem TV e passa uma notícia que diz: “Coronavírus matou 800 pessoas somente na Itália”. Um dos sujeitos então se manifesta: “não concordo”. Ou seja: há coisas que não podem ser argumentadas. A CNN (mas não só ela – lembraria que essa TV da “lacração” é uma constante em vários canais) ao estabelecer um nível de igualdade entre fatos e opiniões, presta um imenso desserviço aos profissionais, mas, sobretudo, à população.
A saída de Gabriela Prioli de O grande debate (embora não se dê apenas por descontentamento, mas por questões bem mais graves trazidas por esse tipo de visibilidade que ganhou, como ameaças de morte) é muito acertada. Agora é torcer para que esse tipo de postura – a recusa de participar de um debate desnivelado – seja repetido por outros profissionais, igualmente capazes de não se deixarem seduzir pelas luzes sedutoras desse palco da lacração. Desta forma, ganhamos nós, os espectadores.
Aniversário
Hoje, dia em que a Escotilha completa 5 anos de existência, publico meu 302º texto no site – a maior parte deles é discutindo a televisão em seus diversos aspectos. Tem sido uma jornada extremamente gratificante para mim, tanto profissional quanto pessoalmente, escrever toda semana e ter contato com muitos leitores que dialogam comigo e com os textos, de forma muito generosa. Deixo aqui meu muito obrigada pela honra que é ser lida por vocês.
* Por fim, meus agradecimentos também ao jornalista Thiago Techy, que chamou minha atenção sobre essa relação entre ‘O grande debate’ e o quadro “Polêmica da semana” do canal Porta dos Fundos.