Quem acompanha com alguma assiduidade esta coluna Canal Zero já deve ter notado que um tema recorrente aqui é a importância que a TV encare certos assuntos. Mais do que isso, costumo me interessar especificamente pela televisão aberta, o “veículo do povo”, que ainda é o meio de comunicação de maior alcance da população brasileira (segundo dados recentes, ela é a mídia mais acessada por 93% dos brasileiros, ficando à frente do rádio, com 46%, e da internet, com 42%).
A partir destes dados, podemos inferir com certa segurança que muito do que o público sabe sobre o mundo chegará até ele por meio das narrativas de televisão. A responsabilidade, portanto, não é pouca. Se os meios de comunicação de massa são, já há bastante tempo, um “filtro” a peneirar como as pessoas apreendem o seu entorno, podemos dizer que a televisão aberta é um gigantesco funil do qual todos dependemos. Se um assunto qualquer não passa por esse funil, é bem provável que ele permaneça invisível à opinião pública.
Isto posto, é bastante louvável quando um programa como o Globo Repórter – atração de cunho otimista, famoso por suas pautas de saúde e pelos inúmeros episódios fundamentados num certo turismo inofensivo a lugares tidos como “exóticos” – traga para uma sexta à noite um tema mais inesperado ao formato. Falo sobre o especial veiculado na semana passada sobre a questão da transgeneridade, um dos temas do momento e um assunto difícil de ser tratado com o didatismo que a TV aberta exige.
A tarefa ficou a cargo de Mônica Teixeira, experiente repórter dos programas hard news da emissora, que empresta uma delicadeza sutil à abordagem. Desde o começo, o programa demarca seu território: vai tratar do “delicado mundo da diversidade sexual” pela ótica das famílias e suas adaptações. Embora haja alguns lapsos no texto – por exemplo, ao apresentar o episódio, Sergio Chapelin significa a transgeneridade como “problema” – as intenções são positivas, respeitosas.
Sendo assim, Globo Repórter nos transporta a um universo que é de sofrimento, de lutas internas (o duro processo de reconhecimento da dissociação entre a alma e o corpo que o carrega), mas por um viés sempre do otimismo, da solução, da “volta por cima”.
Ao longo do programa, conhecemos a realidade do adolescente trans que sofre, mas conta com o apoio incondicional de sua família. Da mulher transgênero que conseguiu um emprego “normal” quando todos imaginaram que ela se prostituiria. Do casal de mulheres divorciadas que jamais sofreram qualquer tipo de preconceito (são as mães do menino que já havia protagonizado um episódio bastante interessante no Altas Horas). Do professor que se tornou professora, enfrentou todos os alunos, casou-se e hoje sonha em empregar outras pessoas transgênero.
A julgar pelo retrato pintado pelo episódio de Globo Repórter, não há preconceito no Brasil, e as pessoas transgênero estão bem adaptadas a um país marcado pela tolerância e pela solidariedade.
A mensagem é bonita, otimista, como requer uma sexta-feira à noite. Não há qualquer problema nisso. Alguém diria, não sem certa razão, que precisamos de leveza nesses assuntos pois a realidade já é pesada em si mesma. A questão principal talvez esteja no subtexto: o apagamento de tantas outras realidades envolvendo as pessoas transgênero. Estas outras experiências, não tão “edificantes”, certamente são a regra, e não a exceção.
A julgar pelo retrato pintado pelo episódio de Globo Repórter, não há preconceito no Brasil, e as pessoas transgênero estão bem adaptadas a um país marcado pela tolerância e pela solidariedade. Eu ainda arriscaria dizer: ao apresentar apenas a realidade da mulher transgênero que escapou da prostituição, sugere-se que todas as outras estão nessa situação por não terem se empenhado o suficiente para procurar oportunidades, ou mesmo por pura “sem-vergonhice”. Ao retratar as duas mulheres que jamais sofreram preconceito, dá-se a entender que todas as outras lésbicas não obtêm o mesmo resultado porque não se impõem, não “se dão o respeito”.
Ou seja, há de se comemorar que o Globo Repórter abra sua agenda a um tema árido – o que, sem dúvida, corrobora para que ele passe a ser não tão espinhoso assim. No entanto, não podemos cerrar os olhos à condição da televisão aberta comercial, que preza pelo didatismo, pelo pedagógico, no mau sentido da palavra. Em outras letras, o que assistimos no programa é a transgeneridade em sua versão domesticada, palatável, formatada para a “tradicional família brasileira”.
Um tratamento justo, mas mais ousado, é mais típico da TV pública, como já discutimos nesta coluna em programa de temática semelhante – que enfrentava o assunto com mais coragem e menos verniz. A própria Globo já conseguiu, em episódio do Profissão Repórter, tratar a questão com mais realismo. Talvez o desafio seja justamente repensar se a família brasileira continua tão conservadora assim e se, efetivamente, não estamos já preparados para lidar com o mundo com mais maturidade.