Leciono em cursos em Jornalismo há 17 anos. Perdi a conta de quantos alunas e alunos que, quando interroguei sobre quem era a sua referência dentro do jornalismo, responderam: Gloria Maria.
A resposta recorrente me servia como uma desculpa para pensar o que eles entendiam por jornalismo. E a justificativa mais comum, claro, eram as viagens. Parecia a todos nós que ninguém teria vivido esse sonho tão plenamente quanto Gloria Maria: o de ser uma jornalista que passeia pelo mundo todo, de mente aberta, mergulhando nas diferentes culturas, tal como um antropólogo.
Diria, portanto, que o reconhecimento público de Gloria tinha um pouco a ver com um “jornalismo festivo”: ela era menos referenciada por um jornalismo “duro”, sobre temas difíceis, e mais pelas glórias da profissão, com o perdão do trocadilho. No caso dela, isto envolvia aparecer na TV, ser amiga de celebridades, entrevistar Madonna e Michael Jackson, pular de bungee jump na China, fumar ganja na Jamaica, mergulhar em águas geladas na Noruega, experimentar a gravidade zero tal como um astronauta.
Mas é importante ressaltar que a parte invejada do seu trabalho é apenas um recorte do que Gloria Maria representou aos brasileiros e, sobretudo, às brasileiras. Não faltam textos destacando o pioneirismo de Gloria, que galgou postos que eram impossíveis (ou pelo menos muito difíceis) na época em que ela começou na profissão.
Gloria Maria, uma pioneira na televisão
Filha de uma família extremamente pobre, Gloria Maria entrou na Globo como estagiária, sem salário. E por acaso, pois a vaga foi oferecida a uma amiga sua, que não pode aceitar pois precisava de dinheiro.
Como a realidade é sempre matizada, por ser especial no que fazia, Gloria Maria foi abrindo outras portas em cinquenta anos de carreira.
A jovem fazia jornada tripla: de manhã, estagiava na emissora; à tarde, estudava; à noite, trabalhava como telefonista. Sem ninguém com ensino superior em casa, ela foi construindo seu caminho sem qualquer tipo de ajuda.
Com seu jeito carismático, capaz de parecer próxima do espectador, ela foi obtendo conquistas e tornando-se pioneira em várias questões televisivas. Entre elas, a de ter sido a primeira repórter mulher no Brasil a ser enviada para uma cobertura de guerra: foi na Guerra das Malvinas, conflito entre Argentina e Inglaterra. Foi a primeira repórter negra do país, e a primeira a fazer um link de TV ao vivo, em 1976.
Em 2007, mais um protagonismo: ela realizou a primeira transmissão em qualidade HD na TV brasileira. Isso ocorreu ao lado do repórter cinematográfico Lúcio Rodrigues, com quem produziu para o Fantástico uma reportagem sobre uma festa dos índios Kamaiurás, no Alto Xingu, no Mato Grosso. A resolução HD só se tornaria o padrão da Globo seis anos depois.
Gloria, contudo, era uma pessoa complexa, assim como todos os humanos interessantes. Ainda que tenha sido uma das primeiras profissionais a se posicionar contra o racismo (após ter sido impedida por um gerente de entrar em um hotel, foi a primeira pessoa no Brasil a acionar a lei Afonso Arino, criada em 1951, que foi a primeira promulgada no país que criminalizava atos racistas), ela concedeu entrevistas em que dizia ver um excesso de preocupação com o politicamente correto nos dias de hoje, reclamando que hoje há quem se ofenda por qualquer coisa.
Em entrevista concedida a Mano Brown, no podcast Mano a Mano, Gloria Maria declarou: “eu tive sorte de chegar em uma época que o talento valia alguma coisa. Sempre fui respeitada como ser humano. Tive a chance de crescer sem ter uma família rica, um marido poderoso… Vim do nada e estou aqui até hoje. A TV Globo nunca me fez favor nenhum. Eu não devo nada à emissora. O que a emissora investiu em mim, eu dou de volta: audiência e credibilidade”.
Revelava, portanto, simultaneamente clareza e alguma confusão. Ao mesmo tempo em que tinha noção sobre suas qualidades e sobre o quanto a sua autonomia e força de vontade foram fundamentais para a construção de sua carreira grandiosa, ela nem sempre reconhecia que seu caso era, em vários sentidos, uma exceção: para uma Gloria Maria, havia muitas apresentadoras e repórteres brancas bem-sucedidas e tantas negras que ficavam para trás.
Mas, como a realidade é sempre matizada, por ser especial no que fazia, Gloria Maria foi abrindo outras portas em cinquenta anos de carreira. Talvez sem querer, ela concretizou o ideal de representatividade em um momento em que essa palavra ainda nem circulava.
E talvez por isso nada faça mais jus ao seu legado (mais que as viagens, mais que o alto astral e o suposto segredo da juventude eterna) do que a quantidade de pessoas negras que, no dia de sua passagem, declararam que a sua presença na TV foi, por muito tempo, a prova que tinha de que poderiam ir mais longe do que o seu país autorizava. E isso é, sem dúvida, um signo definitivo de uma vida bem vivida.
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