É chover no molhado apontar a grandiosidade de Xuxa dentro da cultura televisiva. Por pelo menos duas décadas, a apresentadora significou um parâmetro da comunicação para as crianças, servindo de referência máxima do gênero em uma época que este tipo de programação ainda era forte na TV aberta.
Alvo de incontáveis críticas (pelos padrões de branquitude e beleza e perpetuava; pelo consumismo que estimulava entre seus “baixinhos”) enquanto esteve no ar, Xuxa parece ter vivido todos os ciclos de um produto de mídia bem-sucedido: foi lançada no mercado, reinou absoluta, viu o mundo mudar e se retirou de cena em relativa decadência. Seu período mais baixo, enquanto esteve no ar, talvez tenha sido quando tentou se reinventar na Record, em programas que não chegaram nem perto do sucesso que ela fazia no auge na TV Globo.
Prestes a completar 60 anos, a apresentadora participou do Altas Horas neste último sábado, em uma edição dedicada totalmente a ela e que foi considerada por muitos nas redes sociais como “histórica”. Na plateia, exibindo suas homenagens, estavam presentes tanto pessoas do círculo familiar de Xuxa (como a filha Sasha, o namorado Junno, as Paquitas e algumas amigas pessoais) quanto celebridades que prestam reverência a ela por conta de suas carreiras.
A construção de um reinado
A verdade é que Xuxa obteve um trunfo restrito a poucas figuras da indústria do entretenimento: ela envelheceu com dignidade. E depois de suas quatro décadas de carreira, Xuxa foi ressignificada a partir de uma importância que talvez nem ela mesma soubesse que tinha, nos tempos de Xou da Xuxa, Planeta Xuxa, Xuxa Park e outros programas. É este o legado que foi homenageado pelo programa de Serginho Groisman.
Xuxa se tornou um símbolo de respeito às diferenças para os tantos baixinhos e baixinhas que enxergaram, naquela loira belíssima vestida com roupas extravagantes, um espaço em que pudessem encontrar aceitação.
Enquanto um ícone bem trabalhado (e ressignificado com o passar do tempo), o que se constatou é que Xuxa se tornou um símbolo de respeito às diferenças para os tantos baixinhos e baixinhas que enxergaram, naquela loira belíssima vestida com roupas extravagantes, um espaço em que pudessem encontrar aceitação.
Mesmo os grupos excluídos pelo universo do programa (as paquitas, por exemplo, eram todas loiras e brancas) encontraram um colo eletrônico no Xou da Xuxa. Ela também militou em prol das pessoas com deficiência (embora, no Altas Horas, tenha usado o termo capacitista “especiais” para se referir a elas) e dos animais.
Mas talvez o filho mais legítimo de Xuxa, conforme se viu na homenagem e na repercussão nas redes, é a comunidade LGBTQIA+. Em especial, os meninos gays que, nos recônditos do país, viram na tela da televisão uma possibilidade de participar um outro mundo, em que seus sonhos fossem validados.
Isso ficou claríssimo no especial do Altas Horas, que foi regado por choro e abraços vindos de todos os lados (e é absolutamente impressionante que, mesmo depois de tanto tempo fora do ar, Xuxa segue causando nas pessoas o mesmo tipo de reação, como se elas estivessem diante de alguém divino). Artistas LGBTQIA+ presentes, como Gloria Groove e Tiago Abravanel, interpretaram clássicos da apresentadora no palco.
Mas penso que o ápice do programa esteve na intervenção emocionada do ator Silvero Pereira. Seu depoimento traduziu em poucas palavras a experiência de milhões de crianças e adolescentes com Xuxa. “Sempre fui criança viada, desde pequenininho. Como criança viada no interior do Ceará, a TV era onde eu via o mundo. Não tinha nada de arte na minha cidade, e sempre soube que queria ser artista”, declarou.
Silvero contou que passou a ser chamado de paquita, por chacota, pelas outras crianças. Triunfante e comovido, com chapéu de paquita na cabeça, o ator emendou: “hoje estou ao lado das ex-paquitas, e isso é lindo. Quero dizer muito obrigado por todos que fizeram isso comigo”. E soltou uma frase que faz todo sentido: Xuxa é a nossa RuPaul.
Em sua fala, encerra-se um resumo bastante justo do que a “rainha” tão cultuada por tantos significa para um país conservador como o Brasil. Em fase de uma franqueza que foi esperada por anos (foram vários os momentos em que Xuxa citou e teceu críticas à ex-empresária Marlene Mattos), Xuxa encerrou o programa chamando os quatro anos de Bolsonaro de “desgoverno” e celebrando a chegada de novos tempos.
Homenageada em vida, como ela fez questão de destacar, Xuxa continua prestando um serviço ao país ao apresentar-se como uma mulher que cresceu e envelheceu sempre fiel aos seus “súditos”. Provavelmente, é a última realeza digna que nos resta.
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