Entre trancos e barrancos, a televisão ainda é o canal principal de informação dos brasileiros. Ainda que as redes digitais a sigam com proximidade, a TV ainda tem uma centralidade insuperável em influenciar na forma pelas quais olhamos os fatos do mundo, determinando as lentes pelas quais os decodificamos e os entendemos.
No entanto, esses filtros se modificam ao longo do tempo. É interessante observar, por exemplo, como certas temáticas se “inflaram” nas emissoras televisivas nos últimos anos. Os episódios dos escândalos políticos da última década fizeram que a TV passasse a se atrair por ambientes que outrora talvez fossem considerados desinteressantes a ela – como a esfera do direito, revestida de uma série de protocolos e de uma linguagem jurídica que é acessível apenas a iniciados.
Deste modo, momentos de forte teor “ritualístico”, como as sessões do STF, antes restritas a canais segmentados, passaram a ser veiculados pelas grandes emissoras, e os ministros da mais alta corte do país se tornaram personagens conhecidos do grande público. Viraram mais conhecidos que boa parte dos políticos: têm torcida, detratores, fama. Suas falas, altamente cifradas aos leigos, são colocadas à análise de uma audiência que, ao menos na teoria (pois apenas uma parcela ínfima da população tem formação em Direito), tem poucas condições de entender o que eles dizem.
Isso, obviamente, aumenta ainda mais a responsabilidade que as emissoras têm de decifrar e traduzir aos seus receptores o que quer dizer todo o “juridiquês” de seus argumentos. No entanto, é de se perguntar o quanto isso é possível – desvendar em uma narrativa simples e didática um ambiente que, por sua própria natureza, é baseado na fala de clareza. É bastante provável, portanto, que a TV – e consequentemente o público – acabe destacando sobretudo os momentos mais espetaculares, como a bronca homérica do ministro Luís Roberto Barroso em Gilmar Mendes, que tomou ares de vingança de novela.
Importante dizer, no entanto, que a própria ideia de transparência e da libertação que ela traz também é, em alguma medida, uma ilusão, uma vez que a ideia de tudo ver é bastante controversa.
Não creio que vem ao caso discutir se isso (o fato de que hoje temos muito mais contato com esferas políticas que antes eram bem mais reservadas) é positivo ou negativo. Mais importante, me parece, é observar que tudo isso é, bem no fundo, um sintoma de outras coisas. O aumento da visibilidade de zonas outrora restritas revela uma espécie de pulsão coletiva pela transparência, pela busca de tudo ver e tudo conhecer – como se apenas a luz (aqui entendida literalmente: a luz da câmera, da imagem que revela o real), símbolo do conhecimento, fosse o que irá nos libertar.
Importante dizer, no entanto, que a própria ideia de transparência e da libertação que ela traz também é, em alguma medida, uma ilusão, uma vez que a ideia de tudo ver é bastante controversa. Conforme já discutido nessa coluna, por vezes o excesso de visão nos torna ainda mais cegos. Em outras palavras, acompanhar sistematicamente às sessões do STF, ou demais âmbitos burocráticos do país, não parece nos tornar mais cientes dos trâmites da política, nem tem a possibilidade de nos tornar mais conscientes na hora de fazer nossas escolhas para o pleito eleitoral. De certa forma, no frigir dos ovos, acabamos vendo aquilo que queremos ver.
Não obstante, o sonho da transparência do real a partir da experiência com a televisão (a sensação de que estamos vendo algo que antes não víamos, da forma mais “pura” quanto for possível) guarda certa incongruência com outras partes do noticiário. Por um lado, a transmissão de zonas de bastidores, o uso de câmeras amadoras, a inclusão do público dentro das emissoras profissionais (como na campanha feita pela Globo do “Brasil que eu quero”, que incita os espectadores a mandarem seus próprios vídeos). Por outro, a narrativa exagerada, hiperbólica, mais típica dos filmes de ação, com takes violentos, a impressão de que os temidos “Plantões” da Globo podem saltar a qualquer instante na tela.
Ainda está sendo desdobrada, e há muita coisa ainda a acontecer, mas todo o episódio acerca da condenação e da prisão do ex-presidente Lula certamente ficará marcado na história das coberturas de televisão, e trará muitos materiais para análise. O que vemos, até o momento, foi uma busca exagerada pela emoção, especialmente aquela que advém na transmissão ao vivo. Nos dias que se sucederam, foi como se todos os canais abertos se tornassem transmissões do Brasil Urgente: cenas em tempo real, captadas por helicópteros, pipocando a todo instante, e os repórteres tendo que se desdobrar para encher de narrativa aquilo que viam, ou não viam; elementos que remetem a um bangue-bangue, numa espécie de duelo entre Lula e Sergio Moro; e uma sensação de um ritmo urgente típico de uma perseguição a algum foragido da polícia.
Dito de outro modo, muito show, muita espetacularização, para poucas informações de fato. No entanto, há algo que precisa ser destacado desde já: o fato de que Lula, magistralmente, parece ter tomado as rédeas da narrativa da própria história, fazendo mesmo que emissoras com clara tendência tenham que se “curvar” àquilo que ele pretende falar sobre si. Mas há muitas cenas ainda por vir nos próximos capítulos.
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