Em 2016, quando foi anunciado que aquela seria a última temporada do Programa do Jô na Globo, atração que Jô Soares capitaneou durante 16 anos, escrevi neste mesmo espaço: “chama-me a atenção o quanto as últimas entrevistas batem na tecla da memória ou, mais precisamente, na falta dela. Havia, de certa maneira, um esforço constante em assentar às novas gerações (que não o assistiram em Viva o Gordo) a importância de Jô para além daquilo que hoje ele é conhecido”.
Seis anos depois, despedimo-nos de Jô Soares, falecido aos 84 anos. Foram 64 anos de trabalho na televisão, desde que apareceu pela primeira vez no ar, em 1958, no programa TV Mistério, da TV Rio. Jô tinha então 19 anos. Podemos dizer, portanto, que o comediante e apresentador tenha se transformado durante este tempo no testemunho vivo da história deste veículo de comunicação, atuando como um símbolo do que ela significava e o que significa ainda hoje.
Jô Soares, para quem teve a chance de acompanhá-lo em sua profícua carreira, foi um tipo de profissional que não se encontra mais neste meio de comunicação, tornado símbolo de fama muito antes do que de erudição. Poderia-se até dizer que o caminho percorrido por Jô, hoje, parece torto: filho de pais abastados, crescido dentro do Copacabana Palace, Jô Soares era um grande erudito, um homem culto que desviou de um caminho natural na carreira de diplomata em razão de seu encantamento pelas artes populares.
Seus cerca de 70 anos de carreira são vastos de memórias das suas contribuições para a cultura brasileira em tantos aspectos.
Apaixonou-se pelo teatro e pelo humor, o que o levou aos poucos para o maior palco de todos, o único com abrangência nacional. Depois de participar de programas de humor – como Família Trapo, na Record, e Faça Humor, não Faça Guerra, na Globo – Jô finalmente estreou em 1981 o seu próprio programa, Viva o Gordo, que o sedimentou na mente dos brasileiros.
Tal como Chico Anysio, Jô Soares esteve à frente dos poucos espaços em que a Globo se posicionou criticamente à ditadura militar vigente no país. A título de curiosidade: a ideia original para o nome do programa era Viva o Gordo e Abaixo o Regime, em um trocadilho com o regime militar, mas a emissora preferiu reduzir o nome.
Ainda assim, isto não impediu que vários personagens de Jô fizessem referências diretas e indiretas aos abusos da ditadura, como no personagem Reizinho, um monarca pequeno de ego gigantesco, ou no General, amigo do presidente Figueiredo que passa seis anos em coma e acorda quando a ditadura acabou e pede para morrer logo.
Jô Soares: o estabelecimento da tradição de talk shows
Há muito do que se lembrar quando continuarmos falando de Jô Soares. Seus cerca de 70 anos de carreira são vastos de memórias das suas contribuições para a cultura brasileira em tantos aspectos. Por sorte, o registro eterno possibilitado pela internet nos trará ainda o contato muitas vezes com estes momentos.
No entanto, vale sempre lembrar para as novas gerações (os jovens que talvez estejam agora se perguntando por que Jô Soares merece tantas homenagens) da sua importância dentro do formato talk show, então inédito no Brasil. Em 1987, houve muita polêmica quando Jô optou por trocar a grandiosa Globo pelo SBT, para que pudesse realizar um sonho de estar à frente de um programa de entrevistas.
Na Globo, não havia espaço para que ele pudesse fazer isso. Sua saída da emissora gerou uma forte controvérsia e um boicote da Globo à sua presença, centralizada sobretudo na atuação de Boni, então diretor geral. Jô Soares denunciou publicamente este boicote durante um Troféu Imprensa, ao lado de Silvio Santos.
A aposta de Jô foi certeira. Ele esteve à frente do Jô Soares Onze e Meia entre 1988 e 1999, e criou uma nova tradição: a de entrevistas televisivas de fim de noite, muitas vezes dando furos e gerando muita repercussão posterior. Este caminho acabou sendo seguido por outros comediantes, como Fábio Porchat, Danilo Gentili e Tatá Werneck, em configurações diferentes.
Mas algo que é preciso esclarecer é que, desde sua estreia, nunca houve alguém como Jô Soares. Isto porque Jô conseguiu unir o peso de sua erudição à leveza necessária ao humor. Suas entrevistas-encontro – por vezes criticadas por dar excessiva ênfase à participação do apresentador – sempre revelavam um profissional com uma bagagem intelectual incomparável. Capaz de entrevistar em várias línguas, mencionar tantas referências e, ao mesmo tempo, permanecer generoso e próximo do entrevistado.
A morte de Jô Soares tornou o passeio pelas redes sociais infinitamente mais agradável desde ontem, com tantos compartilhamentos de homenagens, escritos e falas do Jô. Que coisa bonita alguém seguir tornando o mundo mais agradável mesmo depois da morte. Que vida bem vivida!
— Ana Suy (@a_suy) August 6, 2022
A morte de Jô Soares, portanto, escancara um buraco na grade televisiva, por mais que ele não estivesse mais no ar há seis anos. Mas, por sorte nossa, ele segue vivo. Como disse a psicanalista Ana Suy neste lindo tweet que reproduzo acima, a morte de Jô nos traz a certeza de uma vida muito bem vivida e que segue transformando o mundo.
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