Um pequeno burburinho se levantou nas redes sociais na semana passada, por conta de uma notinha publicada na coluna da jornalista Patrícia Kogut, que fala do retorno do programa Linha Direta à grade da TV Globo. Foi o suficiente para estimular uma onda saudosista nos espectadores – o que é curioso, uma vez que a atração era conhecida por causar medo em quem a assistia.
Mais importante que a nostalgia é entender qual era a função do Linha Direta – o que, por outro lado, nos faz pensar o que pode estar por trás deste retorno. Para os mais jovens, uma breve explicação: Linha Direta foi um programa exibido pela Globo entre 1999 e 2007 e que se propunha a fazer dramatizações (com atores) de crimes reais, no intuito de estimular a busca por suspeitos que estavam foragidos. Ele foi apresentado inicialmente por Marcelo Rezende (que seguiu construindo uma carreira no jornalismo policial), sendo depois substituído pelo taciturno Domingos Meirelles.
Mas o relevante de notar é o que o Linha Direta significou na história da Globo: este foi o único programa existente na grade da emissora que configurou explicitamente dentro do gênero policial, tão explorado em outras emissoras, como Record e Band. Ou seja, podemos dizer que este foi um dos poucos acenos feitos pela Globo para dialogar com o público destes chamados programas policialescos, que pretendem fazer um papel de vigilância social que supostamente não é cumprido pelas instituições policiais e judiciárias.
O retorno de Linha Direta à grade, portanto, pode sinalizar a uma nova tentativa de desbravar este ambiente, algo que a Globo nunca mais fez desde então, pelo menos de maneira descarada.
Real e ficção em ‘Linha Direta’
Contudo, Linha Direta ia além do caráter vigilante e paranoico normalmente alimentado por este tipo de atração. Ele tinha um diferencial: mantinha uma ligação com a dramaturgia de ficção, uma das áreas em que a Globo melhor transita em relação às concorrentes.
Estudei o programa entre 2003 e 2005 como um dos objetos da minha dissertação de mestrado, intitulada “Estratégias de representação do real – um olhar semiótico às narrativas do New Journalism e de Linha Direta”. Na pesquisa, propus estabelecer uma relação entre o programa e o Novo Jornalismo, vertente histórica do jornalismo em que se aproveitava recursos da literatura para a construção de reportagens.
Mesmo distantes (um significando o que havia mais sofisticado no jornalismo; o outro, um tipo de atração associada às classes populares), defendi que eles tinham em comum o fato de que misturavam realidade e ficção em suas narrativas. Linha Direta, na verdade, pegava acontecimentos reais (os crimes conforme foram relatados à polícia) e os remontava a partir de uma dramaturgia relativamente refinada, aproveitando um pouco do que a Globo já fazia há décadas nas novelas.
A questão mais pungente no Linha Direta é a narrativa simplória que ele constituía – que, aliás, é a característica típica do jornalismo policial tradicionalmente produzido no Brasil.
A questão mais pungente no Linha Direta é a narrativa simplória que ele constituía – que, aliás, é a característica típica do jornalismo policial tradicionalmente produzido no Brasil. O olhar sobre os acontecimentos era sempre redutor e maniqueísta: pegava-se a versão da vítima para construir uma história com um único viés, em que um bandido moralmente indefensável, que mostrava sinais da maldade desde criancinha, finalmente cometia algum crime horrível.
Ou seja, muito antes de problematizar a criminalidade do Brasil por um olhar a contextos mais amplos (por um viés socioeconômico, por exemplo), Linha Direta apenas sedimentava um discurso policialesco no pior sentido, e que só se acentuou depois do fim do programa.
Vale lembrar que os crimes escolhidos também tinham um viés de classe: quase sempre, quem aparecia enquadrado nestas histórias eram os pobres, seja como bandidos ou como vítimas, trazendo uma certa ideia de que era até esperado que a violência reverberasse no ambiente em que eles estão.
A celebração do crime
Havia outra característica importante na história do Linha Direta. O programa continha edições especiais, que eventualmente iam ao ar. Tratava-se do Linha Direta Justiça (em que se reencenava crimes “clássicos”, como o assassinato de Angela Diniz por Doca Street ou a conspiração para matar Zuzu Angel) e do Linha Direta Mistério (que reconstituía crimes famosos com elementos tidos como sobrenaturais).
Nestas versões, Linha Direta se afastava em definitivo de seu objetivo original, que seria, pelo menos na teoria, ajudar a capturar foragidos – o que, em última instância, tornaria a sociedade mais segura. De alguma forma, já havia ali um embrião da febre true crime que parece hoje pipocar em todos os lugares, transformando assassinatos reais em entretenimento.
Se voltarmos ao viés de classe, daria para dizer que, aos ricos, estava reservado este “Olimpo dos crimes”, aqueles com características mais espetaculares e exóticas, que mereciam ser melhor trabalhadas em uma edição especial, com mais recursos estilísticos. Era como se Linha Direta fosse uma novela, e Linha Direta Justiça, uma minissérie especial.
Tudo isto nos leva a pensar: será que precisamos de um novo Linha Direta? E, em termos de qualidade da televisão, o que o programa pode contribuir à responsabilidade que deveria ser parâmetro de todas as emissoras, incluindo as privadas? E, por fim: se esta notícia se confirmar, o que ela pode revelar sobre os projetos previstos para o futuro da Globo?
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