Em tempos de abordagens polarizadas, em que tudo no Brasil é enfocado sob uma ótica pouco matizada – ou é preto ou é branco, ou é coxinha ou é esquerdopata –, impressiona o quanto as diversas pautas conseguem ser “adotadas” e adaptadas às mais diversas visões de mundo. Conforme já discuti em outros textos dessa coluna, me parece que não há discurso (como os do feminismo, dos refugiados, da igualdade racial, etc.) que não possa ser “domesticado” a favor dos interesses das empresas – instituições cuja existência, inclusive, colaboram para a manutenção de certos problemas sociais que estes discursos tentam desconstruir.
O caso do assassinato da vereadora carioca Marielle Franco, do PSOL, é mais um exemplo a ilustrar isto. Não entrarei aqui na descrição do caso, pois já há muitas narrativas sobre este acontecimento circulando pelas mídias (inclusive algumas fake news), o que coloca o fato como um dos grandes fenômenos político-digitais dos últimos anos. Em suma, a repercussão estrondosa da morte de Marielle no mundo inteiro fez com quem ninguém ficasse “imune” à notícia – seja pelo estarrecimento diante do fato, seja pela desconfiança de que os meios de comunicação deram espaço demais a essa morte frente a tantas outras.
Aos que se posicionaram sob esta ótica da desconfiança (muitos criticaram, por exemplo, que um pai assassinado na frente do filho no Rio de Janeiro no mesmo dia foi “apagado” pela execução da vereadora), no entanto, seria bom lembrar: a morte de Marielle Franco gera esta reverberação gigantesca pois se trata de uma morte social, uma morte política, que não diz respeito à vida de uma única pessoa. Fala não apenas da tentativa de silenciamento de uma voz, mas de muitas que se sentiam representadas por ela.
Talvez mais assustador que a repercussão de sua morte seja observar que Marielle praticamente não ‘existia’ nos telejornais nacionais antes de se tornar esse fenômeno midiático.
Entretanto, talvez mais assustador que a repercussão de sua morte seja observar que Marielle praticamente não “existia” nos telejornais nacionais antes de se tornar esse fenômeno midiático. Ou seja, em vida, Marielle – cujas pautas reverberavam na vida de muita gente, e que era a quinta vereadora mais votada em uma das cidades mais importantes do país – permanecia invisível à cobertura da política, como se a política só pudesse ser feita pelo centro e não pelas margens, que era onde ela, querendo ou não, fazia sua forte atuação. Não é, certamente, o único personagem político a permanecer nas beiradas da televisão.
Nesse sentido, é espantoso notar que, em alguma medida, foi a voz das redes que pautou a TV, e não o contrário. A Globo, inclusive, chegou a exibir entre sua programação um vídeo produzido por uma internauta e divulgado no Twitter, englobando-o dentro de uma campanha sua denominada “Tudo começa pelo respeito”, que busca ampliar as discussões sobre causas sociais na emissora.
Todos os dias temos exemplos de como a internet “empoderou” os populares para que, unidos, exerçam uma força inimaginável numa época em que só tínhamos as chamadas mídias tradicionais (dentre elas, a televisão). As redes sociais conseguem efetivamente fazer com que certos temas sejam pautados pelos grandes meios de comunicação. A grande questão, no entanto, é que não conseguem controlar os usos e as formas destas pautas pelas emissoras.
Sendo assim, a morte de Marielle Franco, para permanecer no mesmo exemplo, parece ter sido apropriada pela TV para a concretização de diversos discursos. Alguns telejornais a enquadraram pelo viés da violência no Rio (enquadramento recorrente na televisão e tema repetido quase diariamente), abrindo espaço à defesa de uma intervenção militar na cidade; outros encararam, desde a primeira notícia, pela hipótese de que o assassinato pudesse ter características de execução e apagamento de uma voz política que incomodava muita gente. O que chama a atenção é justamente o oportunismo no uso da pauta e o fato de que a “regulação” destes discursos pareça se dar justamente fora da televisão.
A grande questão a ser discutida é se esse oportunismo é bom ou ruim para as causas que são abordadas. Tirar Marielle da invisibilidade que era reservada a ela na televisão apenas após a sua morte é importante porque traz reverberação à sua voz ou só serve para que uma emissora consiga tirar algum proveito de um movimento levantado pelas massas? Esta é uma pergunta complexa, é claro, e uma resposta rápida corre o risco de ser leviana.
Não obstante, há sempre alguma satisfação quando alguém “contrabandeia” alguma coisa imprevista para dentro da televisão, tal como ocorreu no programa Encontro com Fátima Bernardes na semana anterior. A escritora Ana Paula Lisboa, que havia estado com Marielle no mesmo dia da execução, foi convidada para o programa e acabou inserindo um certo constrangimento no programa de variedades, que tem uma proposta de entretenimento leve. Em resumo, ela deixou claro que pensou muitas vezes antes de aceitar o convite, e que só aceitou após um esforço de convencimento de uma das produtoras – igualmente negra como a convidada, ela teria convencido Ana Paula sobre a importância de sua representatividade dentro do programa.
A sinceridade de Ana Paula Lisboa no Encontro com Fátima Bernardes, ao contar tudo isso ao vivo e ao dizer em público que poderia estar lá para falar de outras coisas (sugerindo, sutilmente, que nunca seria chamada para ir à Globo se não fosse a morte de Marielle, que também nunca havia sido convidada por Fátima), diz mais do que talvez muitas das reportagens feitas por esta emissora e várias outras. E assim, faz jus à memória de Marielle Franco e à voz de tantos que aproveitaram dessas brechas para inserir a pauta das minorias nas grandes mídias.