O Brasil e o mundo inteiro assistiram à comoção causada pela morte da menina Ágatha Félix, de oito anos, atingida por um tiro de fuzil nas costas enquanto estava em uma Kombi com sua mãe, no Complexo do Alemão, no Rio de Janeiro. Trata-se de uma tragédia cotidiana no estado, e que reflete as falhas das políticas de segurança (ou da falta delas) do governo Wilson Witzel. O escândalo com a morte de mais uma criança inocente, atingida por uma bala perdida em meio a uma guerra urbana, é perfeitamente compreensível.
Tragédias desse tipo logo trazem à tona os patrulheiros da “problematização”, os que entendem que uma morte pode ser apropriada para discursos diversos, a favor ou contra o poder público vigente (o próprio governador, sugerindo uma ação de seus desafetos, declarou que “é indecente usar um caixão como palanque”). A acusação é de que haja uma indignação seletiva, como se comover-se com a morte de Ágatha revelasse hipocrisia de todos os que não se comovem com todas as demais mortes – seja de policiais, criminosos, inocentes, crianças, adultos, etc.
Penso que a questão aqui, ressaltada muitas vezes nas mídias, é que a visibilidade de uma morte como a de Ágatha faz com que ela não se torne uma estatística, ou seja, um número, sem cara nem história. Afinal, Ágatha (e não apenas ela, mas todos os outros que morrem diariamente em meio a esta guerra) tinha família, sobrenome, trajetória. Nesse sentido, aprofundar em sua vida é importante pois é respeitar sua dignidade e sua existência. Ignorar tudo isso significa desumanizá-la, reduzi-la a apenas mais um dado, uma morte que não nos impacta como deveria.
Por isso considero pertinente o espaço dado pelos veículos de televisão para reproduzir essa perda. O grito desesperado do avô de Ágatha, replicado em todas as emissoras, joga na cara de todos os espectadores a dor de perder um filho, algo experimentado pela maioria das pessoas apenas pelos meios de comunicação. O choro dos familiares de Ágatha traz corpo à tragédia, faz com que sintamos que poderia ocorrer a qualquer um – e não apenas às pessoas distantes da classe média, às que moram na periferia, às que estavam no “lugar errado na hora errada” (expressão, inclusive, que carrega um preconceito de classe pesadíssimo).
Mas muitas pessoas se indignaram especialmente com um episódio. Na terça-feira (24 de setembro), os pais de Ágatha estiveram no programa Encontro com Fátima Bernardes, da Rede Globo. Foi a primeira vez que os pais estiveram em público para falar sobre a morte da filha, ocorrida três dias antes. Obviamente, vemos um casal destroçado, em estado de choque, tendo que significar em palavras para uma audiência nacional sobre este fato terrível.
Acredito que, descontados os excessos, haja uma função importante na exposição da morte de Ágatha, exatamente por humanizá-la dentro de uma tragédia cotidiana sem rosto.
Visivelmente constrangida (vale lembrar que o programa, exibido pelas manhãs, costuma abordar temas mais leves), Fátima Bernardes se mantém silenciosa quase todo o tempo durante os aproximadamente trinta minutos tomados pela “visita” do casal. O que assistimos, conforme bem apontou o crítico Maurício Stycer, é uma catarse, na qual a mãe reconstitui em linguagem os últimos momentos passados com Ágatha, como se estivesse os revivendo no palco. É uma cena fortíssima. Vemos na televisão a expurgação de uma dor inenarrável, em sua forma mais pura e visível, compartilhada em rede nacional.
Há algum sentido na exibição de uma dor em público, para que ela possa ser compartilhada e atingir a todos? Existe algum ganho com isso? Em seu texto, o jornalista Maurício Stycer se pergunta, com razão: “por que ela (Fátima Bernardes) não deveria tentar frear a emoção do casal? Trata-se de um programa de auditório ou um consultório de terapia? A televisão é o local para isso?”.
São perguntas densas e profundas, e qualquer resposta rápida a elas seria um achismo, uma leviandade. Recentemente, dentro desta coluna, discuti a exploração feita pelas emissoras paranaenses de uma tragédia ocorrida em Curitiba, envolvendo a explosão em um apartamento e a morte de uma criança. Classifiquei o que ocorreu naquele momento como sensacionalista, ou seja, a busca desmedida pelas sensações, para que elas chegassem ao público. No entanto, essa sensação, exatamente por ser catártica, é passageira: o sofrimento na TV é tolerável justamente porque termina quando desligamos o aparelho.
Em outras palavras, acredito que, descontados os excessos, haja uma função importante na exposição da morte de Ágatha, exatamente por humanizá-la dentro de uma tragédia cotidiana sem rosto. Por outro lado, vale lembrar da discussão trazida pela ensaísta Susan Sontag, em seu livro Diante da dor dos outros. Ao analisar fotografias de guerra, Susan concluiu que o excesso de exposição às imagens de dor tendia a banalizar aquilo que se vê: quanto mais eu vejo o sofrimento dos outros, menos ele me impacta.
Por isso mesmo, a TV trabalha – ou deve trabalhar – sempre na corda bamba. Deve expor aos espectadores as barbáries cotidianas, pois esta é uma de suas funções, o de exibir o mundo tal como ele é. No entanto, é preciso nunca esquecer que o excesso (que é a regra de muitas emissoras) esvazia todo o choque causado pelo mundo real e, por consequência, tende a nos manter na passividade daqueles que já se acostumaram com tudo.