Em que medida o teatro cabe na TV? O novo quadro do Fantástico, “Nelson por ele mesmo”, enfrenta um duplo desafio. O primeiro é o de testar as possibilidades de se levar o processo do teatro (da dramaturgia, da produção, da construção de personagens) para a televisão. Se o teatro é performance e ensaio, palco e bastidores, erudição e lirismo, a TV é sempre mais econômica, precisa, popular. Por isso, transpor algum elemento do teatro para a TV é sempre problemático. Poucos programas (um exemplo é Sai de baixo) conseguiram tirar bom proveito desta mistura entre duas linguagens.
O segundo desafio diz respeito a falar do dramaturgo Nelson Rodrigues na TV. Ainda que suas histórias tenham sido revisitadas várias vezes na Globo – os programas mais famosos foram a minissérie Engraçadinha, em 1995, e o quadro do Fantástico “A vida como ela é”, em 1996 – a obra de Nelson é essencialmente incômoda, provocativa, indigesta e, por isso mesmo, atípica à televisão. Deixa um gosto amargo na boca de uma audiência acostumada a narrativas com finais felizes. Levar seus textos ao grande público, portanto, tem sempre uma dificuldade imbuída.
No intuito de enfrentar estes dois desafios, o quadro “Nelson por ele mesmo” (dirigido por João Jardim, dos documentários Janela da alma e Lixo extraordinário), paradoxalmente, não é centralizado na própria voz do dramaturgo, mas no olhar “daquela que entende tudo sobre texto”: Fernanda Montenegro. Conhecida como a grande dama do teatro brasileiro, Fernanda é uma inegável unanimidade nas artes – algo que, em algum aspecto, já contradiz uma das máximas de Nelson Rodrigues, para quem toda unanimidade era burra. No entanto, não há nada de unânime na complexa obra de Nelson, simultaneamente densa e popular. O desafio do quadro do Fantástico, portanto, é o de levar essa complexidade para a TV, e ao mesmo tempo não repetir todas as demais adaptações já feitas às suas obras.
O formato escolhido é o de apresentar o processo de construção da encenação, o work in progress, e não a peça em si. Menos que encenar mais uma vez os textos de Nelson, o quadro “Nelson por ele mesmo” quer, de fato, levar o público a participar do começo da montagem de uma peça, como se ele fosse, também, o diretor. Participam desse processo Fernanda, como diretora, e Otavio Müller, como o ator que participa dessa criação de entender – e traduzir ao público – a importância deste dramaturgo. O tom é, em alguma medida, pedagógico: ambos (Fernanda e Otavio) esforçam-se em explicar a importância do texto de Nelson para um público que talvez não o conheça.
O desafio do quadro do Fantástico é o de levar a complexidade do teatro para a TV, e ao mesmo tempo não repetir todas as demais adaptações já feitas às obras de Nelson Rodrigues.
Neste sentido, ainda que didático, o quadro é ousado porque é difícil e atípico à televisão. É editado como um grande mosaico fragmentado de monólogos e diálogos em que Fernanda e Otavio tentam decifrar Nelson e sua obra. Em um encontro sobre um palco teatral, eles conversam e tentam situar no tempo e no espaço o texto que irão encarar. “Nelson Rodrigues fala de nossa contradição como brasileiro”, diz Fernanda, na busca de esclarecer ao grande público a complexidade de sua obra fundamentada nas hipocrisias cotidianas. “Nelson era um ser patético, no que essa palavra tem de mais humano”, fala ela, em tom mais contundente.
Otavio Müller, ao adentrar o palco, encena uma espécie de monólogo direcionado para as câmeras, como se encarnasse o próprio dramaturgo, ou um de seus descendentes, ao recitar o texto árido de Nelson Rodrigues. Desfere as “agulhadas” do texto rodriguiano. No primeiro episódio, um dos temas clássicos (e talvez mais batidos) nesta obra: o adultério e o amor. As cenas do dramaturgo de Otavio são intercaladas com as notações da diretora Fernanda, que dá seus pitacos e direciona sua atuação. Assim, Otavio sai e volta do seu papel na frente de sua plateia, transgredindo as “paredes” do teatro. É, assim, uma encenação da encenação, uma gravação da gravação. Não há demais atores em cena.
Em outros termos, o formato de “Nelson por ele mesmo” é difícil e parece causar estranhamento na TV. É, em suma, texto teatral lido em frente às câmeras televisivas, que parecem vocacionadas para veicular linguagens mais palatáveis. Em alguma medida, só faz sentido esse formato dentro do Fantástico por estar nas mãos de Fernanda, uma de nossas poucas unanimidades.
Por outro lado, a série celebra a força da narrativa oral, já que o monólogo estimula a imaginação e o mergulho na mente do famoso dramaturgo. Tem algo de radiofônico no quadro, com diversos efeitos sonoros que nos carregam a outros registros para além do visual. Algo ousado, portanto, se formos pensar em televisão.