Ontem, sentado na cadeira do barbeiro, fui surpreendido quando ele, com quem corto o cabelo e faço a barba há quase 20 anos, começou a falar de Pantanal.
“Como estou trabalhando no horário da novela, vejo o capítulo depois, no Globoplay”, Auro me contou, acrescentando que assistiu à primeira versão ainda garoto, mas como morava em um sítio afastado, no interior do Paraná, perdia muitos episódios, e não lembrava muito bem da trama de Benedito Ruy Barbosa, exibida em 1990 pela Rede Manchete.
A revelação de Auro me pegou de surpresa. Não me lembro de, nessas duas décadas de convívio e muitas conversas, de ele um dia ter falado de telenovela. Gosta de filmes, principalmente de cinema de ação, tipo James Bond, Homem-Aranha e Velozes e Furiosos, mas jamais o imaginei diante da tevê, acompanhando de perto um folhetim.
O apego do meu barbeiro à saga dos Leôncio me fez lembrar que, lá no início dos anos 1970, Irmãos Coragem, de Janete Clair, foi a primeira novela brasileira a conseguir o feito de arrastar o público masculino para diante do televisor.
Para quem não sabe, ou não se lembra, Irmãos Coragem gira em torno de uma família de garimpeiros no Mato Grosso, coração do Brasil. João, vivido por Tarcísio Meira, e Jerônimo, personagem de Cláudio Cavalcânti, habitam a cidade fictícia de Dourado, onde enfrentam um coronel, papel de Gilberto Martinho, que comanda a região à mão de ferro, e com quem entram em conflito por conta de um diamante imenso.
O terceiro irmão Coragem é Eduardo, jogador do Flamengo que vive no Rio de Janeiro, onde veste a camisa do Flamengo. Curiosamente, quem o interpreta é Cláudio Marzo, que anos mais tarde seria o intérprete de, olha vejam só, José Leôncio, protagonista de Pantanal e, também, do mítico Velho do Rio.
‘Pantanal’: Fim
Pantanal, que chega hoje à noite ao seu último capítulo, assim como Irmãos Coragem, é atravessada por temas relacionados direta ou indiretamente à masculinidade – ou melhor, às masculinidades. Assim mesmo, no plural. Na obra reescrita por Bruno Luperi, neto de Ruy Barbosa, esse traço, já presente na versão original, foi ainda mais acentuada.
Para além de ser um melodrama rural, com toques de realismo fantástico, romance e aventura, o folhetim de Benedito Ruy Barbosa tem, em seu cerne, o confronto entre diferentes concepções de masculinidade, rural e urbana, representadas, sobretudo, por Zé Leôncio, agora vivido por Marcos Palmeira, e seu filho, Joventino, interpretado por Jesuíta Barbosa.
O rapaz, que nasceu no Pantanal, foi levado, ainda bebê, pela mãe, Madeleine (Bruna Linzmayer, na primeira fase, e Karine Telles, na segunda), para o Rio de Janeiro, onde cresceu distante do pai peão de boiadeiro (Renato Góes), que julgava morto.
O apego do meu barbeiro à saga dos Leôncio me fez lembrar que, lá no início dos anos 1970, Irmãos Coragem, de Janete Clair, foi a primeira novela brasileira a conseguir o feito de arrastar o público masculino para diante do televisor.
Jove, ao descobrir que Zé Leôncio está vivo e nunca o procurou, decide partir para o Mato Grosso do Sul em busca de si mesmo e desse pai ausente. Lá, na fazenda paterna, se percebe inadequado. É chamado de “frozô” pelos outros peões da fazenda, inclusive seu irmão, o também vaqueiro Tadeu (José Loreto), que o enxerga como ameaça, na disputa pelo amor paterno.
Até Zé Leôncio chega a duvidar da sexualidade de Joventino, que tem medo de montar cavalos, é vegetariano, usa brinco e veste roupas estranhas, efeminadas, além de deplorar a forma pouco sustentável como o pai conduz o seu negócio.
Pai e filho aprendem aos poucos a amar, e aceitar, um ao outro. O aprendizado de Jove passa, também, por se tornar um peão, ou um “homem de verdade’, enfrentando provas de masculinidade, que incluem até por socar o tosco capataz Alcides (Juliano Cazarré), mas sem abrir a mão de seus valores.
Outro desafio em seu caminho é o surgimento de João Lucas (Irandhir Santos), meio-irmão, com inatos talentos para a lida, que surge do nada, pronto para ser o filho dileto, o príncipe herdeiro do pai. Ele, Jove e Tadeu terão de disputar esse trono, e uma sela de prata, em uma simbólica corrida de cavalos, cujo desfecho é adiado para o derradeiro capítulo de hoje.
Preconceitos
Mas Zê Leôncio, para se aproximar do seu filho da cidade grande, também relativiza suas certezas, revendo seus preconceitos – a chegada à fazenda de Zaquieu (Silvero Pereira), o mordomo gay de família de sua ex-mulher, que aspira ser peão é outro desafio para ele e para toda a comunidade de homens da fazenda, que não consegue aceitá-lo. Sente-se ameaçada pela masculinidade queer e potente de Zaquieu, e pela possibilidade do seu desejo, que não se esconde, não se envergonha.
Na propriedade vizinha do vilão Tenório (Murilo Benício), grileiro de passado sangrento e obscuro, outro duelo masculino se deflagra. Ao descobrir que o marido tem outra família em São Paulo, a mulher do fazendeiro, Maria “Bruaca” (Isabel Teixeira), submissa e humilhada, desperta e resolve, primeiro por vingança e depois por prazer, viver sua sexualidade com dois peões, empregados de Tenório, Levi (Leandro Lima) e Alcides, por quem se apaixona.
Não é difícil, portanto, entender por que o barbeiro Auro, assim como milhões de homens ao redor do país, fizeram de Pantanal um fenômeno cultural em 2022. A novela, ao tensionar campo e cidade, natureza e civilização, desejo e dever, falou sobre uma terra de homens diversos, que já não tocam o mesmo berrante.
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