Os leitores mais atentos desta coluna talvez tenham notado que boa parte das discussões trazidas aqui tem a ver com a abordagem de certos temas na televisão aberta. É bem óbvio que alguns assuntos tendem a ser abordados com mais profundidade e qualidade pelos canais fechados: uma vez que possuem público mais segmentado e metas menos estratosféricas, fica mais fácil “ousar” ou sofisticar certos programas quando se fala com menos gente. Por isso, este espaço tem enfatizado sobretudo nos programas da TV aberta, que encaram um desafio bem grande, que é manter a qualidade quando se fala (ou se pretende falar) para uma audiência gigantesca.
Existe então na televisão aberta uma espécie de “elogio ao grande público”, para homenagear a expressão cunhada pelo pesquisador francês Dominique Wolton, que reconhece grandes qualidades nesta chamada tevê generalista. Eu chamaria atenção especialmente a este detalhe: é bastante difícil comunicar bem para grandes públicos; por isso mesmo, cada produto televisivo que atinge este objetivo tem um grande trunfo que precisa ser reconhecido. Esta dificuldade ocorre justamente porque a TV aberta provoca seus realizadores a jogar com inteligência as (poucas) cartas que têm em mãos.
Em outras palavras: quem produz para as massas precisa achar um jeito de se manter “comunicável” a um público heterogêneo, trabalhar com linguagens e repertórios que o público reconheça e não rejeite e, ainda assim, inovar em alguma medida para que se possa criar um produto memorável, digno de elogios. Não é pouca coisa.
Creio então ser importante prestar atenção quando algum produto massivo, tal como o Mais Você, da Rede Globo, propõe-se o desafio de abordar para o seu público com alguma novidade um dos temas do momento, que é, sem dúvida, a pauta sobre o empoderamento das mulheres. A questão do feminismo e da tomada dos direitos das mulheres é um dos mais fortes discursos circulantes na sociedade atualmente – gerando, consequentemente, abordagens e apropriações diversas pelas pessoas e pelas mídias. Algumas destas abordagens, inclusive, esvaziam o sentido original da luta feminista (ou seja, muitas vezes dizer-se a favor do empoderamento das mulheres diz muito pouco, posto que se trata de uma expressão que se associa a um certo modismo).
Mais Você tem como público previsto qualquer pessoa que esteja em casa neste horário, mas prioritariamente a dona de casa, que tem Ana Maria Braga como “amiga” e companhia de labuta, oferecendo conselhos sobre algo que a atinge, conforto a partir das palavras edificantes, ou simplesmente alguma distração para o seu dia. A agenda do programa costuma equilibrar algumas pautas de serviço com entrevistas com celebridades televisivas e reality shows culinários. Na semana que se encerrou, uma das primeiras pautas, porém, foi o “tão falado empoderamento feminino”, oferecido para as espectadoras por meio de uma promessa de tradução deste tema (“saiba o que é”). Na apresentação da reportagem, Ana Maria anunciou que ela teria um “tom leve”.
Quem produz para as massas precisa achar um jeito de se manter “comunicável” a um público heterogêneo, trabalhar com linguagens e repertórios que o público reconheça e não rejeite.
A reportagem foi encabeçada por um homem, o repórter Fernando Ceylão – o que causaria, talvez, certo desconforto em algumas feministas, que acreditam que colocar um homem neste lugar de fala já seria perpetuar o machismo. No entanto, a proposta da reportagem, conforme vemos a seguir, é colocar o homem numa espécie de posição de submissão (tudo, é claro, através do humor e da anunciada leveza). Assim, na abertura, Ceylão está em casa enquanto sua mulher, ao fundo, se maquia para sair ao trabalho. Conforme explica, ela entende a estética como uma estratégia para enfrentar o mundo, sentir-se poderosa. Mas logo esclarece: sentir-se poderosa é diferente de ser empoderada (ponto para a reportagem).
Uma fala especializada é convidada para traduzir o tema com mais estofo: a convidada é a escritora Clara Averbuck, uma das responsáveis pelo site Lugar de Mulher e uma das vozes mais requisitadas hoje sobre o tema. Clara é lúcida e sóbria na sua análise, que é cercada de números, dados e boas colocações. Por outro lado, toda a sua fala (e das demais mulheres entrevistadas) é pincelada por desenhos e infográficos fofinhos que aparecem na tela, nos quais mulheres se transformam em super-heroínas. O recurso usado pelo Mais Você, portanto, inverte a ideia de empoderamento abordada pelas fontes, que é a de trazer igualdade e não de desnivelar homens e mulheres (ponto a menos para a reportagem).
Na sequência, Ceylão volta a ilustrar o empoderamento na sua própria vivência, enquanto funcionário do Mais Você. Ele é um sintoma dessa tomada pelo poder feminino, afinal, trabalha em um programa comandado por uma mulher e com várias outras mulheres batalhando nos bastidores. “Elas mandam e eu obedeço”, comenta o repórter, certamente com boas intenções, mas ajudando a perpetuar um tom meio depreciativo acerca do feminismo (parece-me que dizer isso assim abertamente é quase como afirmar o contrário).
É esse tom mezzo engraçadinho mezzo condescendente da ideia de empoderamento que marca o resto da matéria: o repórter tenta se colocar como “sexo frágil” e mostrar que “confia na capacidade delas” ao se submeter a situações que provariam a competência feminina, como, por exemplo, participar de uma simulação de resgate junto a bombeiras.
A reportagem é finalizada com uma espécie de piada feita por Fernando Ceylão. Ele comenta: “depois de toda forma de violência, tirania, assédio, imposição que as mulheres já sofreram em nossas mãos, não dá para você, homem, aguentar a barra com o mínimo de macheza?” A cena se encerra com a ilustração de sua “macheza”: Ceylão lava a louça de sua casa. De novo, resume-se empoderamento feminino à uma ideia (bastante distorcida, e como se lavar a louça fosse um grande sacrifício) de submissão masculina.
Piadinhas à parte, é louvável a iniciativa do Mais Você de trazer a pauta para suas espectadoras (muitas delas, inclusive, talvez tenham aí o primeiro contato com esta discussão). No entanto, ainda fica aquém de uma abordagem mais profunda do tema. Permanece então o desafio a ser cumprido pela televisão aberta, em uma ingrata tarefa de Sísifo: como trazer densidade e leveza a um tema como o empoderamento feminino, e ainda assim continuar acessível a um público televisivo? Como abordar certos temas com humor esperado à TV matinal, mas não fazer uma espécie de caricatura de algo que é intrinsecamente complexo?