Um mundo em que Elizabeth Bennet, do livro Orgulho e Preconceito (1813), é a melhor amiga de Emma Woodhouse, do homônimo Emma (1815). Essa é a premissa da nova novela das 18h da Rede Globo, Orgulho e Paixão, que estreou na última terça-feira, dia 20 de março. O enredo total do folhetim consiste em uma adaptação livre dos romances de Jane Austen, numa mistura de personagens e roteiros impossíveis nas obras originais.
Do primeiro livro vem o enredo da família Bennet, que estará na trama sob a perspectiva da família Benedito, composta pelas cinco irmãs Elisabeta (Nathalia Dill), Jane (Pamela Tomé), Cecília (Anaju Dorigon), Lidia (Bruna Griphão) e Mariana (Chandelly Braz), e encabeçada pelos patriarcas Felisberto (Tato Gabus Mendes) e Ofélia (Vera Holtz). Do segundo livro, quem aparece é a própria Ema (aqui com apenas um “m”), no folhetim, vivida por Agatha Moreira.
Elisabeta Benedito é a adaptação da famosa personagem Elizabeth Bennet e, assim como na literatura, a heroína da televisão é transgressora e rebelde, ambicionando uma existência que ultrapasse as limitações do casamento, único destino possível para as mulheres da época. Thiago Lacerda dá vida a Darcy, um rico e orgulhoso empresário que, contra todas as chances, se encanta pela aventureira Elisabeta, assim como na história original. O casal abre a história já se desencontrando, trilhando um caminho turbulento que trafega em meio às diferenças sociais, interferências externas e às divergências de personalidade dos dois.
Há ainda outros personagens transportados da mais famosa obra de Austen: o melhor amigo do personagem de Lacerda é Camilo (Maurício Destri), releitura de Charles Bingley, o grande amor da encantadora Jane; a mãe de Camilo, Julieta (Gabriela Duarte), é uma interpretação mais jovem de Lady Catherine de Bourgh, a tia elitista de Fitzwilliam Darcy; a terceira filha Bennet a ter uma releitura fiel é Lídia, a caçula; o vilão, no original George Wickham, chama-se na novela Diogo Uirapuru (Bruno Gissoni).
Outras famosas obras de Jane Austen também serviram de inspiração. A vilã Susana, interpretada por Alessandra Negrini, tem como base uma mulher misteriosa da obra Lady Susan, no qual vemos uma protagonista que difere das heroínas e mocinhas criadas por Austen. As outras duas irmãs Benedito também são um exemplo.
Mariana é uma mistura de Kitty Bennet (Orgulho e Preconceito) e de Marianne Dashwood, de Razão e Sensibilidade (1811): Kitty é a grande companheira de Lydia, mas não se mete em encrencas como a irmã; já Marianne é uma jovem bela e romântica, que sonha com um amor aventureiro e fogoso, mas acaba descobrindo que o amor verdadeiro pode estar na constância de pequenos gestos. Já Cecília Benedito, a traça de livros, é uma mistura de Mary Bennet e de Catherine Morland, a protagonista de A Abadia de Northanger (1817): a primeira é a mais tímida das cinco irmãs Bennet, detesta bailes e acredita que existem formas mais eficazes de interação social; Catherine, por sua vez, é personagem de uma paródia dos romances góticos.
Quanto à escalação dos atores, devemos bater palmas ao elenco. Vera Holtz encabeça a lista de melhores atuações da novela: sua Ofélia é crível, irreverente e engraçadíssima e isso também levanta a bola para quem atua ao lado dela, como Tato Gabus Mendes, que vive o marido e as cinco filhas. Há algum tempo afastada da teledramaturgia, Gabriela Duarte, brilha com sua ótima Julieta. Alessandra Negrini, como sempre, interpreta muito bem sua vilã; e Grace Gianoukas, que faz a ajudante hilária de Susana, a empregada Petúnia, ajuda a compor o que promete ser um núcleo promissor.
A nova produção atrela o romance ao humor, adotando ao transpor as histórias de Jane Austen para o formato de folhetim um estilo diferente da escritora. Orgulho e Paixão resgata a típica comédia romântica do horário das seis.
Embora os livros da autora se passem nas primeiras décadas do século 19 nos campos ingleses, a novela da Globo acontece 100 anos depois, ambientado no Brasil rural do auge do Ciclo do Café. Os nomes ingleses também foram trocados ou alterados para algo mais apropriado ao português. Aqui vale destacar as lindas imagens de cafezais, as locações espetaculares, a cenografia (Eliane Heringer), os figurinos (Beth Filipecki) e a produção de arte (Silvana Estrela).
A trama escrita por Marcos Bernstein e com direção artística de Fred Mayrink é, como sua antecessora, Tempo de amar, de época. Porém, sem o sofrimento e as cenas escuras. A nova produção atrela o romance ao humor, adotando ao transpor as histórias de Jane Austen para o formato de folhetim um estilo diferente da escritora. Orgulho e Paixão resgata a típica comédia romântica do horário das seis. Formato que consagrou Walcyr Carrasco na faixa, ainda mais se levarmos em consideração sua predileção por casais que vivem brigando apesar de se amarem. A primeira semana da dramaturgia lembra, por exemplo, O cravo e a rosa, afinal o principal enredo é o relacionamento de gato e rato entre Elisabeta e Darcy. E já que citamos Carrasco, outra semelhança é a trama ser uma “inspiração”. A grande diferença está na qualidade dos diálogos, menos didáticos e mais cuidadosos.
Toda a trama usa e abusa de um senso de humor leve, um tanto ingênuo, com os atores todos falando um tom acima, quase teatral. E esse é o único ponto que me incomoda, pois imprime um tom à história que beira a farsa, já que dá comicidade em momentos que poderiam ser dramáticos e faz os personagens ganhem um ar bobo e infantil. Se a trama conseguir dosar isso ao longo dos próximos capítulos dará um ar de mais credibilidade a história, que tem tudo para fazer sucesso e, nas entrelinhas, discutir a temática feminista de Jane Austen.
E antes que questionem o fato de eu usar Jane Austen e feminismo na mesma frase, explico que, realmente, por muito tempo, estas obras foram tachadas de “água com açúcar” e mero entretenimento para mulheres educadas. Levaram anos até que os estudiosos de literatura percebessem que a autora, na verdade, estava expondo o sistema machista e as exigências absurdas do mundo feminino. E é esse o tom que é promessa na novela.
Resta seguir assistindo para conferir, afinal ao mesmo tempo que é inovador trazer as obras de Austen para este formato e em um cenário brasileiro, é arriscado. Misturar universos numa única trama, transpondo clássicos deste tamanho com um público que não hesitará em fazer comparações ao vê-los na TV, pode tanto resultar em absoluto sucesso como em estrondoso fracasso.