Duas mulheres, uma morena e uma loira, estão sentadas em uma cama. Elas são cercadas por mais duas: uma mulher, em pé, dobra algumas roupas, e outra está deitada embaixo dos lençóis. Aparentemente, a loira e a morena discutem e estão sendo apaziguadas pelas outras. A morena, inicialmente com rosto impassível, como se estivesse em outro lugar, começa a ficar irritada e profere palavrões contra a “rival”. Ela berra na cara da outra, com uma fúria que cresce: “não tenho paciência”. Repete essa frase pelo menos quatro vezes.
A morena – a que está nitidamente nervosa – levanta e se afasta. Senta em outra cama, bem afastada do grupo. A loira continua conversando com as outras. Ouvimos ela dizer: “é por isso que não dá para conversar com ela na hora. Ela não tem cabeça”. A frase gera uma explosão imediata na primeira moça, a morena, que salta a distância de três camas em uma agilidade impressionante, como se andasse sobre a água, e acaba prostrada em frente à loira, encarando-a com feição raivosa, lembrando um cachorro em posição de ataque. A cena inteira é muito tensa.
A descrição acima é de um trecho de A Fazenda 12, reality show exibido pela Record em 2020, e as envolvidas na situação são as participantes Raissa Barbosa (a morena) e Carol Narizinho (a loira). Na cena, vemos uma reação de Raissa frente à colega, com um comportamento agressivo, certamente bem mais intenso que a ação inicial que teria causado esta explosão.
Ao longo da temporada do programa, ficamos sabendo que Raissa é portadora de borderline, também conhecido como transtorno de personalidade limítrofe (TPL), diagnóstico que aponta a um transtorno ainda pouco conhecido no Brasil. Em poucas linhas, os portadores do TPL tendem a ter personalidade instável, com tendências à impulsividade, além de uma sensibilidade muito aguçada nas relações interpessoais, fazendo com que reajam aos estímulos de forma muito intensa e dramática. É considerado um transtorno severo, pois prejudica todas as seções da vida de um indivíduo: pessoal, amorosa, profissional, familiar, entre outras. Estudos mostram que 10% dos sujeitos diagnosticados cometem suicídio.
O caso de Raissa Barbosa colocou o termo na pauta de uma discussão em torno do reality show da Record. Muitos se questionaram sobre se a participante deveria ter entrado no programa, e se ela se colocava em risco (ou colocava outros colegas) ao aceitar participar de A Fazenda. O fato é que, indubitavelmente, o programa trouxe alguma popularização ao transtorno bordeline e proporcionou certo conhecimento (mesmo que raso) sobre uma questão referente à saúde mental coletiva.
Obviamente, Raissa não é a primeira pessoa com alguma doença mental a aceitar entrar em um programa de confinamento, que se fundamenta justamente na expectativa de que os participantes sejam “eles mesmos”, em seu melhor e pior. A ideia de um reality show deste tipo é que, como as pessoas são filmadas 24 horas por dia, as câmeras eventualmente captem suas reações “reais” e não performadas (ou seja, atuadas meticulosamente pensando em algum tipo de recepção do público).
A partir disso, a Escotilha discute aqui se essa discussão pública sobre saúde mental se amplifica (ou não) quando é feita em televisão aberta. A exposição de pessoas em sofrimento mental, mesmo em programas de entretenimento, faz com que a população adquira mais informação sobre o assunto? Será que conseguimos de fato entender como a audiência decodifica essa discussão? E pessoas com algum diagnóstico deveriam se submeter a esse tipo de exposição? São essas as questões que a reportagem busca enfrentar, a partir dos olhares de quatro profissionais: o psicólogo Flavio Voight, o jornalista e colunista do UOL Chico Barney, especialista em reality shows, a jornalista Amanda Ramalho, do podcast Esquizofrenoias, e a jornalista e pesquisadora Roberta Brandalise, doutora em Ciências da Comunicação.
Como as pessoas entendem os reality shows?
Quando pensamos em como o conhecimento circula a partir da televisão, estamos falando, é claro, do público – categoria tantas vezes generalizada como a “massa”, termo que coloca toda a audiência dentro de um mesmo saco. Por isso, há um erro em imaginar que temos controle sobre como as pessoas “leem” um programa de TV. Isso se dá porque o público (ainda mais em um país de dimensões continentais) é essencialmente heterogêneo. Roberta Brandalise pontua alguns elementos que tornam esta leitura muito complexa: “fatores como os raciais, os étnicos, os de nacionalidade, o de regionalidade, o de gênero, o geracional, o de grupo socioeconômico, considerando trajetória, posição e classe social, o de escolaridade, o de urbanidade e ruralidade, entre outros, e, inclusive o repertório do público sobre os próprios produtos midiáticos, influenciam as múltiplas leituras e usos que fazem de qualquer mercadoria cultural, participam da formação do seu gosto e podem orientar padrões de consumo”, explica.
Segundo a jornalista, ter um conhecimento melhor do público é fundamental para quem está produzindo televisão. “Tanto que as empresas de mídia investem cada vez mais em pesquisa. Cada vez mais é preciso desenvolver competência em pesquisa para atuar na área de comunicação. Pois, é o caminho mais eficiente para minimizar os danos causados pelas decisões que são tomadas com base, unicamente, na experiência e repertório daqueles que estão responsáveis por colocar no ar, manter ou cancelar um programa”, acredita Roberta. Em outras palavras, não há como generalizar os efeitos de um programa de televisão sem que se faça uma pesquisa que leve em conta múltiplos fatores, uma vez que o público de TV é muito heterogêneo.
Amanda Ramalho (que produz o podcast Esquizofrenoias, que discute temas relativos à saúde mental) levanta um ponto interessante: mesmo que a conversa sobre algum transtorno mental seja superficial (como o caso do borderline em A Fazenda), pelo menos o tema passa a ser mais falado. “O interesse do público sobre o assunto aumentou. Vi algumas matérias falando sobre borderline e como estava sempre nos trending topics, muita gente acabou por se interessar no assunto, pesquisar mais”. Ela ainda acredita que o debate sobre saúde mental precisa ser mais frequente na TV. “Costumo dizer que saude mental é saúde. Assim como existem programas que têm a diabetes como pauta, a saúde mental deveria entrar também”.
Para o psicológo Flavio Voight, há vantagens e desvantagens em expor questões relacionadas à saúde mental na televisão. “Quanto mais exposta a discussão sobre ela, mais as pessoas se beneficiam, pois frequentemente este assunto é enterrado. Não conversamos muito sobre isso, principalmente na esfera doméstica. Então assistir a algumas discussões a respeito, ou pelo menos ver alguma história real, pode colaborar sim com o aumento da frequência dessas discussões, o que é sempre bem-vindo. O que é complicado é que muitas vezes existe uma manipulação de fatores que podem gerar uma descompensação emocional nesses reality shows”.
Voight destaca também que a produção dos programas muitas vezes articula para que os participantes se alterem emocionalmente. “Eu lembro de ter lido que alguns desses programas privam os participantes de sono, o que pode aumentar a instabilidade emocional; às vezes a alimentação deles é irregular, etc. Isso tudo acaba manipulando a emoção das pessoas que, caso elas tenham um transtorno, elas serão ainda mais afetadas por isso e sairão mais ainda de seu comportamento habitual”.
Há um erro em imaginar que temos controle sobre como as pessoas “leem” um programa de TV.
Na opinião de Chico Barney, no caso de reality shows como A Fazenda e BBB, as edições pecam pela falta de um contexto oficial amarrado pelos programas, levando que a discussão muitas vezes se torne confusa. “Tudo é debatido na margem, com diferentes versões, o que acaba gerando mais ruído do que informação. O que eu senti por parte da trajetória da Raissa é que houve muito rumor, mas pouco debate onde poderia ter rendido mais, que era no próprio programa. Ficou o dito pelo não dito, uma narrativa paralela”, pontua.
Sabemos mais de transtornos mentais por causa de A Fazenda?
Será que podemos dizer que sabemos mais sobre questões mentais desde que as pessoas resolveram expor suas intimidades na TV? Para os especialistas, esta é uma questão complexa. Roberta explica: “vivemos em uma época em que, de um lado, a própria mídia tem colaborado com a divulgação de informações sobre saúde mental, de outro, não. Se uma pessoa estiver diante de nós, passando mal, com por exemplo sintomas de um ataque cardíaco, por diversas vezes, saberemos o que fazer, chamamos uma ambulância. Entretanto, se uma pessoa estiver diante de nós, passando mal, tendo por exemplo sintomas de um surto psicótico, quantos de nós sabemos que é preciso buscar ajuda médica? Esse conhecimento medeia a formação da opinião do público sobre o que ocorre com um participante em uma situação detonadora de conflito em confinamento. E esse saber pode vir pela trajetória de vida do público, ou pode ser adquirido com escolaridade formal ou mesmo pelo consumo de produtos midiáticos”.
Já Flavio Voight vê a possibilidade de que a discussão pública se distorça, de acordo com o trabalho de edição feito pelo programa. “Eu acredito que quando não há uma discussão proposta para fazer uma discussão embasada sobre saúde mental em um programa, é mais possível que haja uma distorção na reflexão sobre o tema, porque só vai mostrar um comportamento sem estimular necessariamente ter uma discussão sobre, ou no máximo vai mencionar: essa participante é borderline, por isso ela atua de forma descompensada”.
O psicólogo ainda destaca que há a chance de que se faça uma leitura redutora sobre como ocorrem os transtornos mentais. “Há toda uma manipulação na edição, fatores que interferem no comportamento, ou seja, não vai ser um retrato verdadeiro. É um reality show, mas muitas vezes é mais show que reality, e você não vê tudo o que gerou um comportamento. Você só vê a forma que a pessoa encontrou para lidar com os estímulos que ela recebe”, explica.
A redenção de Raissa
O Brasil conhece esse tipo de reality show de confinamento há pelo menos duas décadas: a primeira edição de Big Brother Brasil data de 2002; a primeira Casa dos Artistas, no SBT, foi exibida em 2001; a primeira edição de A Fazenda foi ao ar em 2009. Ao longo destes anos, os programas se popularizaram e o perfil dos participantes também mudou. “Antes era um negócio mais próximo e restrito a certos clichês recorrentes: a turma que quer fama a qualquer preço, os artistas que caíram em desgraça, gente que tinha pouca coisa a perder. Com as redes sociais, profissionais de diferentes esferas conseguiram enxergar vantagens na exposição que esse tipo de programa tem a oferecer: a boa cantora que pode atingir mais gente, o bom ator que pode se relançar em nova roupagem. Muita gente é conhecida, tanto pelo grande público quanto pelo nicho, mas nem todo mundo tem fã-clube. E isso é algo que o reality proporciona”, explica Chico Barney.
Vários participantes destes programas revelaram portar algum tipo de sofrimento mental. Andressa Urach se definiu como alcoólatra em A Fazenda 6; Leka, em BBB1, era bulímica; outros, como Marcos Harter (BBB 17 e A Fazenda Nova Chance), Tina (BBB2) e Theo Werneck (A Fazenda 1), embora não diagnosticados, apresentaram comportamentos exageradamente agressivos ou descompensados. Em 2020, o caso mais repercutido foi o de Raissa, cuja assessoria de imprensa, em suas redes sociais, expôs seu diagnóstico como borderline.
Flavio Voight pontua que é preciso haver alguma responsabilidade das emissoras na hora de montar seu casting. “Eu não acredito que uma pessoa que tenha um transtorno de personalidade, como o borderline, que é muito delicado no sentido relacional, tenha condições de lidar com esses estímulos muito intensos para gerar conflito. Então o limite não é nem no momento de exibir a cena, mas sobre a ética na hora de selecionar pessoas e colocá-las em situações adversas que podem fazer mal a elas. É quase como convidar alguém que tem um problema no intestino para participar de um programa e dar uma comida que o corpo dela não terá condições de digerir”, explica.
Curiosamente, Raissa, em entrevistas como a que foi concedida ao canal de Chico Barney, disse ter se surpreendido com a boa recepção do público em relação ao seu transtorno – o que não ocorreu com outros participantes. Por que, então, Raissa foi acolhida pela audiência? Voight acredita que isso tem a ver com a edição. “Você mostra um lado específico, como uma vilã, por exemplo, e provavelmente a edição vai pesar para esse lado dramático. Mas vivemos em um momento que a discussão sobre saúde mental tem pautado vários discursos e ganhado mais espaços, isso dá mais audiência. O que leva a uma opção por mostrar a situação de um jeito que seja discutida de um modo mais específico”.
Chico Barney também aponta fatores relativos a como a história de Raissa foi mostrada. “Acho que a situação dela como vítima, uma vez que foi provocada e atacada pelos colegas. O público age muito para compensar essa falta de acolhimento, quando entende que a participante tem carisma. Mesmo os piores excessos ficaram parecendo reações minimamente justificáveis. Já outros participantes que agiram de maneira violenta e destemperada se colocaram como algozes, buscando o conflito, em vez de reagindo a ele. Isso faz muita diferença na percepção do público”, pontua. Amanda Ramalho também acredita na influência do contexto em torno de Raissa: “ela já havia abordado o tema em suas redes e para ela me parece algo muito bem resolvido. Ela já foi para o programa com essa ‘carga’. Tinha um nome, tínhamos alguma informação”, explica.
Vale arriscar a saúde mental por dinheiro?
Por fim, uma provocação: é preciso ser emocionalmente instável para entrar em um reality show? O psicólogo Flavio Voight responde: não necessariamente. “Deve ter mil fatores que fazem tomar essa decisão: a crença de que a exposição dará algum sustento a ela num país em que todo mundo está precisando de dinheiro, por exemplo. Talvez a falta de saúde mental seja a pessoa não arriscar. Ao mesmo tempo, a pessoa que é obcecada por se mostrar o tempo todo também vai ter algum desequilíbrio um pouco mais intenso possivelmente”.
Além disso, Voight alerta que todas as pessoas têm algum tipo de desequilíbrio. “Não existe uma linha visível na saúde mental. O que existe são pessoas, todas com algum grau de sofrimento, e que tentam lidar com a vida da melhor vida possível. Algumas vão aceitar se expor, por acreditar que essa é a melhor escolha naquele momento, e outras vão preferir sua privacidade, e cada decisão tem seus ônus e bônus”, conclui.