Cenas do telejornal vespertino da RPC, afiliada da TV Globo no Paraná. No dia em questão, a edição está transcorrendo em uma praça do centro da cidade de Curitiba, onde os apresentadores interagem com pessoas que acompanham a transmissão ao vivo.
Um dos “temas” abordados é a identidade de Curitiba, uma vez que a capital completará seu aniversário no fim de março. Por isso, a apresentadora faz uma enquete com os presentes: pede para que eles definam a cidade com uma palavra.
Passa-se o microfone entre os transeuntes, que citam termos como “acolhimento”, “turismo”, “chuva”. Mas um sujeito parado lá, quando tem o microfone em sua frente, solta: “o abrigo da FAS, aquilo é uma enganação” (a FAS, sigla para Fundação de Ação Social, é o setor de Curitiba que cuida de políticas para populações vulneráveis).
A apresentadora, pega pela surpresa e pelo fato de estar em uma transmissão ao vivo, precisa demonstrar uma reação rápida. A resposta que ela escolhe é esta: “reclamações a gente recebe em nosso aplicativo”. Pula para uma próxima pessoa, que emenda outra palavra positiva: “sorriso”.
A questão mais relevante aqui é pensar por que isto acontece. Será que faltam notícias?
O episódio configura uma espécie de fratura, possibilitada pela transmissão ao vivo (que, como já escrevi em outros momentos, é parte fundamental na lógica do jornalismo televisivo). Penso que ele é uma boa oportunidade para nos atentarmos a um problema crescente nos telejornais brasileiros, sobretudo nos regionais e locais: a diminuição da reportagem para que se dê um espaço cada vez maior para um produto mais vinculado ao entretenimento e à pessoalidade do que ao jornalismo.
São telejornais em que a figura dos apresentadores e repórteres adquire uma importância desmedida, o que faz com que a atração se afaste de maneira gradativa daquilo que é (ou deveria ser) sua essência: a produção jornalística, que pressupõe, de forma muito resumida, prestar um serviço à população e fiscalizar as fontes do poder.
Tudo o que foge disso, portanto, é adendo, pode ser retirado. E o que se vê nestes telejornais (e não me refiro apenas aos do Paraná) é uma ênfase naquilo que é desimportante.
A personalização do jornalismo
Recentemente, o mesmo jornal da RPC reservou uns bons minutos de uma edição para acompanhar a volta de uma apresentadora após a licença maternidade. Um colega, inclusive, foi buscá-la de carro em casa, e todo o trajeto foi exibido ao vivo durante o telejornal.
Por óbvio, o que se oferece ao espectador nesses casos não é jornalismo, mas outra coisa, mais voltada ao culto de celebridades, por exemplo. Lembra mais o Mais Você do que o Jornal Nacional. Do mesmo modo, o tempo dedicado para receber comentários de cidadãos elogiando sua cidade ou exibindo fotos de espectadores enviadas para o aplicativo da emissora ocupa um espaço em que fatos de interesse público poderiam estar sendo cobertos pelos repórteres.
A questão mais relevante aqui é pensar por que isto acontece. Será que faltam notícias? Falta estrutura para cobrir eventos relevantes, ou profissionais experientes, capacitados para realizar investigações de peso?
Se espremer, as notícias ocupam uns 20% do telejornal local. O resto se divide entre conversê dos apresentadores e mensagens de telespectadores. Haja paciência!
— Lenise Aubrift Klenk (@leniseklenk) March 1, 2023
Minha hipótese mais forte tem a ver com uma pressão exercida cada vez maior por engajamento – o termo que parece ter substituído, quase que por completo, a antiga pecha da “busca por audiência”. Deseja-se que o espectador não troque de canal ou migre para outras plataformas (como o celular). Mas, também, deseja-se que ele se sinta próximo, quase como se o jornalismo e os jornalistas fossem uma espécie de fandom agradável que ele precisa querer participar.
O preço pago por isso, contudo, é muito caro, e tem a ver com uma desconfiguração cada vez maior do produto que nós, jornalistas, somos formados para fazer. Como deixar uma fiscalização por conta de um aplicativo.
ESCOTILHA PRECISA DE AJUDA
Para continuar a existir, Escotilha precisa que você assine nosso financiamento coletivo. Você pode contribuir a partir de R$ 8,00 mensais. Se preferir, pode enviar um PIX. A chave é pix@escotilha.com.br. Toda contribuição, grande ou pequena, potencializa e ajuda a manter nosso jornalismo.