Não é novidade alguma que os programas de culinária são hoje uma febre nos canais de televisão. Se antes estavam restritos aos horários em que as donas de casa estavam na frente da TV, deixando bem claro a quem se direcionavam (às únicas responsáveis pela alimentação da família), hoje a culinária de TV se popularizou. Está acessível a todos os públicos – há até as atrações que prometem ensinar às crianças como fazer comida.
Se outrora os programas costumavam ser comandados por “senhorinhas” (como Palmirinha e Ofélia) é porque a televisão legitimava algo que já acontecia na vida fora dela. A cozinha era, claramente, um espaço das mulheres, que lá faziam um trabalho “de formiguinha” – que, aliás, quase nunca era valorizado como trabalho, e sim como obrigação. A cozinha pertencia às coxias, ao lugar onde se guarda os segredos, ou seja, ao local escondido do preparo (desglamourizado) de algo que posteriormente tomará as mesas em sua versão bonita, estetizada.
Mas, como bem apontou Isadora Rupp, se algo bom surgiu da chamada “neurose fitness” foi uma retomada de atenção sobre o processo de cozinhar e alimentar-se, revalorizando a culinária como parte cotidiana e necessária da vida de todos nós. As cozinhas, então, saíram das coxias e passaram a ocupar o nobre espaço das emissoras televisivas, em programas que nos auxiliam a retomar a reflexão sobre o que consumimos. As atrações são inúmeras (só no canal pago GNT são mais que dez programas, entre os produzidos por ele e os comprados de emissoras estrangeiras), e migraram também para a TV aberta.
A questão central, aqui, seria: o que saboreamos quando nos prostramos frente à TV para assistir aos programas de culinária? Ora, qualquer um que já ficou em frente do MasterChef Brasil e acabou perdendo seu horário de sono já se deu conta que estes programas – especialmente os que fazem uso do formato reality show – causam quase uma hipnose no espectador. A partir do momento em que um programa deste tipo nos “fisga”, é quase impossível desligar a televisão.
Existe então um certo paradoxo nesses formatos, que é a tentativa de capturar o espectador por certos sentidos (visão, audição) para experimentar algo intransponível à tela, algo que não se consegue desfrutar se não por sentidos outros (paladar, olfato, tato). O grande enigma é tentar entender como esta tarefa é, geralmente, cumprida com sucesso. Ficamos embasbacados, meio que comendo com os olhos – mas comendo o que, afinal?
Claro está que não é apenas alimentação aquilo que os programas nos oferecem. Talvez ela seja a menor parte do cardápio, aliás. Por regra, programas culinários de competição – como Bake Off Brasil e BBQ Brasil – priorizam bem mais a discussão sobre o sabor que sobre os elementos nutricionais da comida. Ou seja, os jurados avaliarão mais o profissionalismo e a técnica no preparo da comida (se tal alimento se “apaga” ou não junto aos outros) do que se ela cumpre as necessidades básicas da alimentação diária.
Basta ver, por exemplo, as provas de MasterChef Brasil sobre formas de preparar muitos ovos juntos, desconsiderando o quão prejudicial à saúde pode ser certo alimento, ou a reflexão inexistente sobre o consumo de altas quantidades de açúcar em Bake Off Brasil. Por outro lado, esta (falta de) preocupação encontra equilíbrio em outras atrações – por exemplo, no programa Bela Cozinha, embora haja também outras questões possíveis sobre o que significa esta “vida simples” que ele nos vende.
Ou seja, o que os programas nos ofertam é prioritariamente outra coisa. Vejamos, por exemplo, o fascínio causado por MasterChef Brasil, exibido pela Band, certamente o mais popular os programas culinários na grade televisiva brasileira. As atrações são várias. Há o teor gourmet obtido ao se entrar em contato com especialistas em diversas áreas da culinária. Há um gosto de “gente diferenciada” pelo fato de os jurados (ao menos 2/3 deles) serem estrangeiros, e de esta “estrangeirice” ficar bem evidente na performance deles (o francês Erick Jacquin, inclusive, precisa ter sua fala legendada em todos os episódios).
Mesmo tão distantes e sofisticados, o programa é calculado para mesclar o distanciamento e a dureza do jurado (tal como um professor durão que usa uma retórica de humilhação para extrair o melhor de seu pupilo) e a vulnerabilidade e a humanidade dele (como o momento em que Paola Carosella chorou ao ganhar uma bandeira do Brasil, ou quando Henrique Fogaça fez uma fala muito comovente sobre a filha, que é deficiente). Esse jogo do afastamento/proximidade é fundamental na experiência do programa.
Existe um certo paradoxo nos programas de culinária, que é a tentativa de capturar o espectador por certos sentidos (visão, audição) para experimentar algo intransponível à tela, algo que não se consegue desfrutar se não por sentidos outros (paladar, olfato, tato).
Os ingredientes do reality vão, claro, muito além da culinária. Embora o formato não priorize muito a exposição da vida pessoal dos participantes (eventualmente, há uma entrevista com algum deles em sua casa, feita por Ana Paula Padrão, trazendo um breve vislumbre da vida deles fora das câmeras), é necessário que consumamos algo além de que as habilidades daquele que ali se coloca como um potencial chef de cozinha.
O embate moral em MasterChef Brasil
Os episódios de MasterChef Brasil instigam que o público para que tragam suas próprias convicções a participar do programa. A matéria prima, como o de todo bom reality show, é o “material para conversa” que ele gera após o encerramento da edição. As questões centrais precisam ir além da culinária, e gerar um bom debate sobre a condição humana e a forma pela qual o público vê o mundo. Nas últimas edições, por exemplo, a tensão se deu por conta de uma competição “mata mata” entre os participantes, à la Jogos Vorazes, em que deveriam demonstrar suas capacidades de sobrevivência no preparo de um dos mais essenciais elementos na alimentação brasileira, o ovo.
A tensão crescente em cada passagem de prova (eram quatro provas no total, envolvendo quatro formas de preparar o alimento) se situava nas decisões morais que levantavam. Nas provas (e na vida, é claro), o que deve ser priorizado, técnica ou experiência? A constância e a paciência de um preparo da vida toda, ou a malandragem para conseguir sobreviver frente às adversidades – e não é esta, afinal, uma grande metáfora sobre a identidade brasileira?
Ao fim do embate, chega-se a um grande “duelo”. De um lado, Gleice, a participante com a história mais triste do programa, vinda das classes populares e que, dentre todos os concorrentes, dá a impressão de ser a que teve menos oportunidades ao longo da vida para aprimorar-se – aparentemente, então, a que mais precisaria dessa oportunidade galgada no programa. De outro, Leonardo, jovem e bonitão, mais consistente durante toda a edição de MasterChef Brasil – repercutindo, certamente, tempo e oportunidades para estudar. A torcida entre os colegas é claramente a favor de Gleice, e contra o rapaz, que acredita jamais ter feito nada contra os demais para merecer a certa antipatia (e pelo que foi exibido pela edição, parece ser a verdade).
A decisão pessoal sobre quem “morre” neste duelo, claro, diz muito sobre nós, enquanto sociedade e enquanto país, e é este o ingrediente principal a nos hipnotizar semanalmente frente às telas, e o que nos inspira a sacrificar tantas horas de sono na esperança de descobrir um pouco mais sobre nós mesmos.