“Todo dia, sempre vai haver alguém ameaçando sua liberdade. E eu não posso manter essa família unida se eu não te ensinar de onde viemos, quem somos nós. Não posso manter essa família unida se eu não lembrar de quem eu sou. É por isso que contarei esta história”. Frase final do remake de Raízes.
Diversas obras contaram a história de escravidão e diversas obras ainda vão contar. Raízes talvez tenha sido a produção televisiva de maior impacto dos anos 1970 em relação ao tema para os norte-americanos. Foi mais do que uma minissérie, mas um marco cultural que reacendeu discussões, colocou o dedo na ferida e fez os Estados Unidos olharem para trás e refletirem sobre suas fundações. A minissérie foi indicada a impressionantes 37 Emmys – ganhou nove – e alcançou uma audiência até então inimaginável. Exibida durante oito noites consecutivas, a produção era baseada no livro de Alex Haley (Raízes: A Saga de Uma Família Americana) e contou a história real do escravo Kunta Kinte e toda sua descendência.
Quase 40 anos depois, os canais A&E e History uniram-se para um remake. Muitos criticaram, o cantor Snoop Dog declarou um boicote à série por destacar novamente o sofrimento dos negros, e alguns críticos não aceitaram mexer em um clássico. Depois de quatro episódios exibidos na sequência (ou oito, para quem acompanhou pela Rede Globo), o resultado final é agridoce: Raízes é uma obra espetacular, mas é frustrante perceber como ainda é obrigatório mostrar uma nova versão para que as lembranças não se percam e não se cometam os mesmos erros. Em tempos tão tristes de Trump, Bolsonaro e a luta do movimento Black Lives Matter, a história de Raízes ressurge com uma relevância um tanto quanto assustadora.

Com muito mais recursos, clareza histórica e possibilidade de transmissão, a nova versão é mais brutal, sangrenta e difícil de assistir. A angústia continua para o público e traz mais detalhes do que sua antecessora, mesmo que o impacto da audiência não chegue nem perto do que foi nos anos 1970. Os dois primeiros episódios são bem mais violentos do que o original. Se em 1977 Raízes trazia uma elegância em sua narrativa, a versão de 2016 prefere focar numa história um pouco mais dura, seca e, consequentemente, mais real. Considerando que uma série história com esta temática precisa emular uma época tão absurda, os roteiristas esforçam-se para que a audiência (branca) sinta vergonha por tudo o que aconteceu e que os afro-americanos sintam-se representados e, acima de tudo, respeitados. Se isso realmente ocorre, depende do repertório de vida de cada um.
Em tempos tão tristes de Trump, Bolsonaro e a luta do movimento Black Lives Matter, a história de Raízes ressurge com uma relevância um tanto quanto assustadora.
E mesmo com a violência e uma narrativa mais dura do que a original, Raízes continua sendo uma experiência catártica. São quase 8 horas de duração e, embora perca o ritmo nos dois últimos episódios, a minissérie consegue contar uma longa história com detalhes ricos. Raízes consegue mostrar porque carrega este título ao passar os ensinamentos dos ancestrais do protagonista, algo essencial na formação da identidade de um povo. Quando se entende a dívida histórica dos brancos, fica muito mais fácil (e triste) entender porque o racismo ainda é algo tão presente. E mesmo que a história foque na América do Norte, a minissérie acaba sendo relevante para o mundo todo. Se os Estados Unidos vivem uma profunda divisão racial, o Brasil ainda carrega resquícios muito fortes por ser o último país a abolir a escravidão, há apenas 129 anos.

Como na versão original, Raízes começa com a história de Kunta Kinte (Malachi Kirby), um guerreiro Mandingo capturado em Gâmbia pelos próprios africanos e vendido como escravo para o fazendeiro John Waller (James Purefoy), na América colonial. Depois disso, a história segue todos na linha de sucessão de Kunta Kinte e a luta de uma família para manter, enfim, suas raízes.
Os dois primeiros episódios são cruéis ao mostrar em detalhes as condições desumanas nas quais os escravos chegavam por meio dos navios negreiros. Mas diferente da primeira versão, Raízes ressalta a prática da escravidão também pelos próprios africanos e apresenta personagens mais humanos e menos estereotipados (Kunta Kinte, por exemplo, tem o sonho de estudar e ir para a universidade). Depois do sequestro, o roteiro foca na resistência de Kunta à vida escrava, traz uma fortíssima cena em que o personagem é obrigado a renegar seu nome e aceitar ser chamado de Toby e mostra a formação de uma nova família. A narrativa avança após o nascimento de sua filha Kizzy (E’Myru Lee Crutchfield).

Quando a minissérie tira Kunta do protagonismo a história perde um pouco o ritmo, com cenas um tanto desnecessárias e que poderiam facilmente ter sido excluídas ou ter menos tempo na tela. Ainda assim, a minissérie traz atuações brilhantes de Jonathan Rhys Meyers, como o perverso fazendeiro Tom Lea, além da incrível E’Myru Lee Crutchfielde, e discute a relação entre senhores e escravos. No último episódio, Raízes volta a acertar a mão e detalha a participação dos afro-americanos na Guerra Civil, em diálogos poderosos e uma atuação incrível de Anna Paquin como Nancy Holt.
Mesmo que 12 Anos de Escravidão (2013) seja uma produção recente e tenha alcançando uma audiência muito maior, Raízes ainda carrega um discurso extremamente relevante, sendo difícil ignorar sua importância. Ainda que a versão original tenha atravessado as barreiras da televisão e impactado os EUA até mesmo em termos políticos, a nova versão acertar ao relembrar uma época responsável por institucionalizar o racismo e a perversa divisão de classe, que permanece até hoje em todo o mundo.