Cena da novela Laços de Família, exibida originalmente na Globo em 2000. Helena (Vera Fischer), uma empresária do ramo da estética, conversa com Miguel (Tony Ramos), seu potencial crush, no café situado na livraria dele. Eles falam sobre viagens. Helena elogia o quanto Miguel é viajado e fala vários idiomas. Em seguida, desenrolam o seguinte diálogo. Miguel inicia:
– Viajar é a maneira, se não a mais fácil, a mais agradável de se aprender, principalmente sobre os costumes de cada lugar que você conhece.
Helena responde:
– É… Eu viajo bem menos do que eu gostaria. Mais para os Estados Unidos que para a Europa. Eu nem sei por quê! Quer dizer, sei: eu geralmente viajo com filho, filha, e eles preferem Nova York a qualquer lugar do mundo.
– Bom, minha filha, outro dia, disse: papai, se é verdade o que estão dizendo por aí, eu quero estar em Nova York quando o mundo acabar.
– Ah, mas agora em março eu vou para a Inglaterra.
– Inglaterra? Que coincidência, eu estou indo em março para Londres em uma feira do livro.
A novela, de autoria de Manoel Carlos, está sendo reprisada atualmente no horário do Vale a Pena Ver de Novo, 20 anos após sua exibição. Há um certo estranhamento causado por vários aspectos do folhetim, simbolizados aqui nesta cena. Parece quase politicamente incorreto ver, em horário nobre, a realidade tipicamente ilustrada nas novelas do autor: os dramas e as delícias de uma classe média alta, com personagens que transitam no Leblon, entre livrarias, praias, cafés e haras, enquanto falam sobre suas viagens internacionais – sempre ao som de uma bossa nova.
Em texto anterior, tratamos sobre como as reprises de novelas na pandemia deram origem ao fenômeno inusitado de revisitar narrativas antigas que hoje soam terrivelmente anacrônicas, ou seja, muito afastadas da realidade social do Brasil que um dia representaram. Isso inspira uma nova questão: será que as novelas, ao longo destas últimas décadas, mudaram completamente o seu regime de realidade? É possível comover a audiência a partir de novelas que trazem esse mundo idealizado da classe alta (como as obras de Manoel Carlos), ou o público (majoritariamente pobre, se formos analisar a demografia brasileira) quer se ver na TV?
Em busca dessas respostas, fomos atrás das visões dos especialistas em novelas. Conversamos com Rosana Mauro e Anderson Lopes, ambos jornalistas, professores universitários e doutores em Comunicação pela USP, e Nilson Xavier, crítico de televisão que é responsável pelo site Teledramaturgia, um dos principais espaços da internet que aglutinam informações e análises sobre os folhetins brasileiros.
Como as novelas refletem o mundo social
Para os especialistas, as telenovelas, enquanto produtos culturais que refletem o contexto histórico-social em seu entorno, naturalmente se modificam com as mudanças da sociedade. Por isso, é natural – e esperado – que as novelas fiquem datadas. “O Brasil de 2000 não é o mesmo de 2020 e é normal que as mudanças se reflitam na telenovela. Ficamos mais críticos socialmente com o passar dos anos (em 2040 seremos ainda mais, com mais coisas). Relações de classe, representações estereotipadas e falta de representação de determinados públicos são questionadas o tempo todo agora na internet, nas redes sociais”, pontua Rosana Mauro.
É preciso observar que houve modificações também no espaço que a televisão ocupa na vida das pessoas. “Vejo bastante mudanças em termos de produção e recepção. Se a gente olha a TV de vinte anos atrás, é uma TV que reina soberana e absoluta, e hoje a televisão briga pelo espaço com as plataformas de streaming. Obviamente, falamos aqui num contexto brasileiro. No nível da produção, a gente teve alterações de modelos de negócio, além de alterações sobre quais narrativas pertencem a quais grades horárias”, explica Anderson Lopes.
Para o professor, tudo isso impacta no que hoje se chama de “economia da atenção”, que diz respeito à quantidade de tempo (e consequentemente de vida) que dedicamos a cada mídia. Isso começa a alterar o modus operandi da televisão. “Logicamente, as matrizes culturais das novelas, como o melodrama, continuam, mas a forma de contar uma história, nas novelas, começa a passar por pequenas alterações, que envolvem também como os eixos das protagonistas são colocados em cena”, complementa Lopes.
Será que as novelas, ao longo destas últimas décadas, mudaram completamente o seu regime de realidade?
As mudanças também se relacionam com o maior contato que o público tem com as fontes de informação. Os espectadores das novelas, portanto, têm algumas características diferentes dos que assistiram a Laços de Família em 2000. “Hoje a exposição da opinião do público é bem maior com a internet, o desenvolvimento de ferramentas e o aumento do acesso a elas, do que há 20 anos”, explica Rosana.
Nilson Xavier observa um refinamento do paladar do telespectador motivado por dois principais fatores: “o avanço e a popularização das séries estrangeiras via streaming (a telenovela brasileira deixou de ser a preferida ou a única opção para o público) e uma maior conscientização em relação a certas abordagens, antes corriqueiras, hoje já não mais permitidas (racismo, machismo, misoginia, feminismo, homofobia e outras)”. Ele observa também que há uma pressão social que motiva as mudanças na televisão. “Há uma patrulha da sociedade cada vez maior na forma como esses assuntos são tratados. A sociedade evolui (ou não) e a televisão sempre a acompanhou”, conclui.
Outro aspecto social que refletiu nas mudanças nas novelas é o que Rosana Mauro coloca como o fenômeno midiático da “nova classe C”, quando as classes populares passam a ser mais representadas nos folhetins. Dois marcos dessa virada foram as novelas Avenida Brasil e Cheias de Charme. “O subúrbio, a periferia e as empregadas domésticas conquistaram certo protagonismo na ficção. Claro que não é de forma definitiva. Há variações, novelas que voltam com o protagonismo mais forte da riqueza. Os autores também têm suas marcas, Manoel Carlos sempre escreveu sobre personagens ricos do Leblon em suas novelas”, pontua Rosana.
Anderson Lopes também observa o impacto deste avanço de uma classe C consumidora nas narrativas das novelas, citando também como marco as Empreguetes, de Cheias de Charme. “Hoje, a gente já consegue visualizar que temos a narrativa de que pessoas da minoria (em sentido político, e não demográfico) importam”, argumenta.
Um Brasil de Lurdes ou Helenas?
Em 2020, antes da suspensão da exibição de novelas inéditas por causa da pandemia causada pelo Covid-19, a Globo exibia Amor de mãe, telenovela de Manuela Dias cuja trama se centralizava na vida de Lurdes (Regina Casé), uma mulher pobre, imigrante do Nordeste, que trabalha como babá e criou os filhos sozinha. O núcleo de sua família, composta por quatro filhos (desconsiderando o desaparecido Domenico), era o preferido do público. Isso acentua o estranhamento frente a novelas em que as classes abastadas são as protagonistas, como Laços de Família ou Por Amor. Daria para afirmar que as novelas das Helenas não funcionam mais nos dias de hoje?
Nilson Xavier responde que há novelas para todos os gostos e públicos – e que o desejo de ser ver numa história (caso da Lurdes) ou de se projetar (como uma Helena) também tem a ver com o momento em que vivemos. “Neste atual momento, de pandemia, acho que está claro que o público está preferindo a Helena, a fantasia, justamente para fugir da dura realidade. Já eu, prefiro a Lurdes, que, apesar de ser mais real, também pode emocionar, tanto quanto a fantasia das Helenas do Leblon de Manoel Carlos”, opina.
Anderson Lopes assinala que hoje não se pode mais entender como regra um receptor que se relaciona com as novelas a partir da ideia da projeção – ou seja, querendo ter a vida sonhada de uma personagem. “Começamos a ver que as discussões sobre classe, gênero e raça chegaram muito fortes nestes últimos anos. Em termos de identificação versus projeção, o público se modificou muito. O público hoje está bem mais interessado em representação identitária”, acredita.
Já Rosana Mauro acredita que essa questão envolve a forma pelas quais as personagens são construídas. “Personagens convincentes e interessantes cativam e geram projeção ou identificação. Mas, acho que nesse sentido a coisa é mais complexa, vai além da relação de classe. Eu posso me identificar com a Lurdes ou com a Helena por vários motivos, por seus conflitos familiares, amores, vontades, ou até de forma inconsciente com as maldades de uma vilã. Mas há projeção também, eu posso querer ser igual a uma personagem com espírito livre, pelo seu romance e família e não necessariamente a mais rica”, opina.
Rosana, inclusive, estudou em sua tese de doutorado como a mulher das classes populares foi construída nas novelas Avenida Brasil, de 2012, e A Regra do Jogo, de 2015, ambas de autoria de João Emanuel Carneiro. Ela constatou a construção de dois tipos de personagens femininas, no que diz respeito à classe: a trabalhadoras (que englobam as sensuais “periguetes”, as empregadas domésticas e a mulher valente, uma variação da mocinha tradicional do melodrama) e as emergentes sociais.
Mesmo assim, Rosana acredita que a identificação (ou não) com personagens ricas ou pobres é sutil. “Uma personagem rica com a qual a gente não se identifica em nada também não gera projeção. Mas claro que tudo é glamourizado na televisão, até mesmo a pobreza. A pobreza das personagens da novela parece até que é boa. Isso é ficção, o que é ruim até parece bom, importante de alguma forma, mais interessante do que a vida de verdade”, esclarece.
Anderson arremata relembrando da concorrência forte pela atenção que as novelas têm com vários outros conteúdos. “Dentro da lógica da economia da atenção, a pessoa que vê uma obra dedica um tempo para ela. Duvido que hoje, com tanta oferta de conteúdo, uma pessoa vá suportar por muito tempo assistir a um diálogo de madames ricas do Leblon falando sobre viagens e praias, de uma vida descolada da realidade. Em termos de identificação e projeção, acredito que a fatia da população que procura assistir à telenovela e se identifica com a Lurdes é muito maior”, conclui.
O fim das “novelas de rico”?
Por fim, poderíamos dizer que a era das “novelas de rico” já chegou ao fim e que a tendência é que os próximos folhetins sejam sempre mais próximos da realidade da audiência? Os entrevistados não apostam nesta hipótese. Para a professora Rosana Mauro, “mesmo as novelas que representam a periferia e o subúrbio partem de um lugar de fala, das pessoas envolvidas na produção, na escrita, direção, etc., de um senso comum sobre o que é ser brasileiro da favela, por exemplo. É um discurso que pode ter aspectos elitistas no seu modo de representar. A empregada doméstica negra ainda é muito estereotipada até mesmo em uma novela que retrata o subúrbio, vide Avenida Brasil e A Regra do Jogo. Mas também existe o interesse em ver riqueza nas novelas, senão as reprises não fariam tanto sucesso”, explica. No entanto, pensa que talvez essas novelas antigas sucedam hoje apenas por serem reprises. “Fazer de novo a mesma coisa não rola. Ainda assim, há novelas novas que trazem a riqueza, mas talvez de um modo diferente”.
Anderson Lopes acredita que, para entender se há uma mudança de paradigma nas classes sociais cujo olhar as novelas representam, é preciso atentar às lógicas de produção e quem são as pessoas que produzem estas narrativas. “A gente não pode falar que hoje o olhar da classe alta ficou para trás, mas sim que ele foi amenizado, docilizado, de forma a tentar agregar audiência de outras faixas de classe. Mas quando a gente olha para quem produz, percebe que é uma classe dominante alta tentando se comunicar com uma classe média ou baixa. No fim das contas, o discurso talvez tenha se alterado, mas os mecanismos estruturais e estruturantes continuam nas mãos da classe alta”.
Já o crítico Nilson Xavier pontua que, acima de tudo, novela é entretenimento. “Eu ainda acho que ela cumpre sua função de escapismo. A Helena do Leblon idealizado ainda é possível. Só que agora ela vem incutida nessas novas formas de tratar as problemáticas atuais. A realidade mudou, mas a fantasia exigida continua e sempre continuará. Lembrando que Lurdes é ficção, ainda que mais realista”.
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