Quantas vezes você ouviu que assistir a novelas é perda de tempo, coisa de gente alienada? No entanto, é bem possível que você, leitor, já tenha se dado conta de que boa parte dos programas de ficção (como uma novela) ganha grande repercussão justamente por refletir elementos da realidade. Quanto mais efervescente é uma época, maior a probabilidade de que surjam produtores de grande talento que criarão histórias memoráveis sobre aquele momento.
É mais ou menos esta a lembrança que tenho de uma novela de comédia, abertamente fantasiosa mas profundamente enraizada na realidade do Brasil: falo de Que rei sou eu?, novela de Cassiano Gabus Mendes, dirigida por Jorge Fernando e veiculada pela Globo em 1989. Ambientada no reino fictício de Avilan, Que rei sou eu? partia de uma premissa claramente ficcional, explorando o gênero do romance de cavalaria e capa e espada (ao estilo de histórias como Os três mosqueteiros, de Alexandre Dumas) para executar uma paródia bastante ácida da situação política do país. Tudo embalado pela grudenta música-tema “Que rei sou eu?”, cantada pelo “dono” das aberturas das novelas dos anos 80, Eduardo Dusek (uma curiosidade: ainda que tenha feito muito sucesso, a música da vinheta de abertura era, na verdade, o “Rap do rei”).
Talvez a grande sacada de Que rei sou eu? tenha sido o fato de capturar uma inquietação de sua época e uni-la a uma temática alegórica da monarquia, com toda a fascinante pomposidade dos tempos medievais.
O sucesso, conforme esperado, foi estrondoso. Criança na época, minha memória envolve ver os pais voltarem correndo dos seus trabalhos para casa para não perder um capítulo da novela das 7 (lembremos que eram os anos 80, e eram ainda razoavelmente raras as mães que trabalhavam fora; por isso, ver o pai voltar correndo para casa para acompanhar uma novela era algo um tanto inusitado).
Que rei sou eu? pegava o gancho da Revolução Francesa (passava em 1786) para delinear Avilan como um reino em que abundava a corrupção, concretizada sobretudo pelas mãos dos políticos – algumas das melhores cenas envolviam as conversas e tramoias dos “conselheiros” do reino, que faziam referência clara aos políticos da época. Eram encarnados por um elenco de qualidade: Gaston (Oswaldo Loureiro), Bidet (John Herbert), Bouchet (Daniel Filho), Vanoli (Jorge Doria), Crespy (Carlos Augusto Strazzer – um dos grandes atores brasileiros, falecido precocemente em 1993, sendo uma das primeiras vítimas públicas da AIDS), e Gerard (Laerte Morrone). A crítica à burocracia e à falta de escrúpulos do governo era evidente: havia um “Conselheiro de Mares”, ainda que Avilan não fizesse fronteira com qualquer oceano.
Muitos personagens adquiriram forte popularidade. A rainha, por exemplo, era incorporada de forma muito espirituosa pela atriz Tereza Rachel. Sua mãe, a baronesa Lenilda Eknésia, foi vivida por Dercy Gonçalves, em uma participação de poucos capítulos. Outro personagem muito lembrado era o poderoso Ravengar, uma espécie de bruxo que desempenhava uma função de conselheiro da rainha, encarnado magistralmente pelo ator Antônio Abujamra, grande diretor do teatro que assumia aqui seu primeiro papel de peso na televisão. Seu sucesso foi tanto que chegou a emplacar o bordão “não me amole, Fanny”, no qual se referia à criada Fanny, interpretada por Vera Holtz.
Como bom melodrama, a história girava em torno de um romance: o herói Jean Pierre (Edson Celulari), filho bastardo do rei, se dividia entre o amor de Aline (Giulia Gam), uma rebelde, e Suzanne (Natalia do Vale), esposa do conselheiro Vanoli. Curiosamente, a trama amorosa acabava se tornando secundária frente ao tom satírico que construía um humor político, conforme já dito, que servia como uma espécie de alívio a uma população que enfrentava bons apuros na chamada “vida real”. Em 1989, os ânimos estavam acirrados: o Brasil se preparava para as primeiras eleições diretas desde os tempos de ditadura; a economia estava afogada em uma inflação sem precedentes, abrindo espaço para os discursos sedutores de salvadores da pátria (foi o ano em que um jovem Fernando Collor conquistou o país com sua promessa de se tornar um “caçador de marajás”, assumindo a presidência em 1990; o resto é história).
Certamente, roteiros com subtexto político não são exatamente uma novidade na dramaturgia brasileira. Talvez a grande sacada de Que rei sou eu? tenha sido o fato de capturar uma inquietação de sua época e uni-la a uma temática alegórica da monarquia, com toda a fascinante pomposidade dos tempos medievais. Além disso, a novela tinha como trunfo o fato de contar com um texto de extrema qualidade. As piadas reverberavam o noticiário – haviam personagens ocasionais que apareciam na novela fazendo clara referência aos sujeitos que adentravam as manchetes dos jornais. O texto fazia também uma profunda crítica ao país. Nada funcionava direito em Avilan: a guilhotina destinada a decapitar os condenados, por exemplo, sempre enguiçava. O reino, tal como o Brasil, passava por um pacote econômico e mudava de moeda (o país, na época, vivenciava a transição do Cruzado para o Cruzado Novo).
Que rei sou eu? foi veiculada em ano eleitoral e chegou a ser acusada de operar como estratégia política da Globo para difundir suas convicções e manipular o resultado das urnas. Curiosamente, a novela encerrou com uma espécie de mensagem subversiva: no último capítulo, o povo toma o poder à força e invade o palácio real de Avilan, em uma clara alusão à tomada da Bastilha que dá início à Revolução Francesa. Certamente, um grande clássico da televisão.