Maura, interpretada por Nanda Costa na atual novela das nove, já foi assunto dessa coluna. Na época, comentei o fato dela estar no centro de dois temas polêmicos da trama: um deles era sua homossexualidade.
A história da personagem foi toda construída em cima do seu romance com Selma (Carol Fazu) e do fato dela ter um pai machista e homofóbico e precisar assumir sua orientação sexual e enfrentar o preconceito. Selma era casada, mas traía o marido com a policial, que, por sua vez, foi apresentada desde o início como lésbica. Com a morte do marido, Selma admitiu o romance com Maura.
Foram vários capítulos abordando o drama da personagem que, além de humilhada, chegou a ser expulsa de casa ao ser descoberta como gay – com o pai dando o asqueroso discurso machista do “falta um homem para te mostrar o que é bom”. As duas foram viver juntas e resolveram ter um filho por inseminação artificial. Foi aí que começou o dilema: Selma queria um doador anônimo, Maura queria um doador que ela conhecesse e confiasse. O doador acabou sendo Ionan (Armando Babaioff), parceiro de trabalho da policial, que, por sua vez, tem um casamento atribulado com Doralice, por causa do ciúme dela.
Mesmo resistindo no início, a personagem de Carol Fazu acabou cedendo. Mas como nem tudo são flores, os problemas começaram quando o policial começou a se intrometer e se envolver nas decisões em torno do bebê. Além disso, todas as pessoas para quem Maura tentava explicar a doação, tratavam Ionan como pai da criança – isso vale um comentário à parte: sério gente? Em pleno século XXI essa história de “não entender” o que é uma doação de esperma e uma inseminação artificial?
Tudo desandou quando Agenor (pai de Maura) descobriu a gravidez e contou para Doralice, que surtou ao descobrir que o marido fez tudo sem o seu consentimento. Após toda a confusão, no dia 25 de agosto (sábado), foi ao ar uma cena na qual Ionan e Maura se encontram em um parque e conversam sobre seus problemas pessoais e o filho que ela está carregando.
“As coisas lá em casa tão bem difíceis, sabe? Selma tá com umas cismas, assim besta. Tá bem pesado lá”, desabafou a personagem. “É, não está fácil para nós dois… Ferrei com a minha vida e acho que compliquei a sua!”, disse o policial. “Não fala isso, você teve o gesto mais nobre que um amigo poderia ter, me deu uma razão para viver. Esse filho é a maior alegria de minha vida!”, retrucou Maura.
O diálogo continuou e, emocionados, comentam sobre o bebê a falta que um faz ao outro, já que não trabalham mais juntos. Ionan acariciou a barriga de Maura e se declarou: “A gente se entendia sem precisar falar. Só se olhar. Você foi uma das melhores coisas que me aconteceu nesses últimos anos. Minha vida ficou mais leve. Bem mais leve”, disse Ionan. E aí o casal se beijou (veja a cena aqui).
Não dá para alegar que foi uma total surpresa. As sequências dos personagens já davam indícios que o enredo caminhava para isso e o envolvimento entre os dois já era algo previsto. Os atores têm química. A trama foi, aos poucos, formando um casal bonito para conquistar o público, enquanto Selma se mostrava como uma cônjuge chata e possessiva, como Doralice já era.
A novela ainda está em construção, então é possível promover em Segundo Sol uma ampla e responsável discussão sobre orientações sexuais e desconstrução de gênero.
Nas redes sociais, o beijo dividiu opiniões. Muitos usuários demonstraram indignação pela cena, principalmente o público homoafetivo, ressaltando que o autor estaria reforçando a ideia de “cura gay” e defendendo a “tradicional família brasileira”. “Obrigada, Rede Globo, por fazer minha mãe achar agora que lésbica pode gostar de homem, é só aparecer o ‘homem certo’. Essa coisa de Maura e Ionan me dá nojo. Muito obrigada”, desabafou uma internauta.
Por outro lado, houve também o público que curtiu e aprovou o possível início de romance, defendendo que o autor talvez queira abordar a bissexualidade. “Gente, essa narrativa de Segundo Sol é justamente para mostrar que nossa sexualidade pode ser fluida. Calma aí, o que tem de cura gay nisso se na história não falava com certeza que a Maura era lésbica? Ela não pode ser bi, não?”, questionou outro usuário.
Se for o segundo caso, ótimo. Não há problema em Maura ser bissexual – pelo contrário, seria o máximo o assunto ser discutido no horário nobre. O ponto é a personagem ter sido apresentada desde o início como lésbica. Porém, não há objeção em uma lésbica se descobrir atraída (sexualmente ou romanticamente) por um homem – pode ser a descoberta da própria Maura sobre sua sexualidade.
Então, qual é o problema? A verdadeira questão é a maneira como o autor irá construir a história. Em outro texto dessa coluna, comentei sobre o caso parecido que aconteceu na última novela das nove, O Outro Lado do Paraíso. E naquela ocasião, o desenrolar da trama foi catastrófico. Na atual trama, o medo é que, pela romantização envolvendo o casal e um bebê, a novela acabe reforçando o “ideal” de família homem + mulher e, pior, dê razão ao pai homofóbico de Maura, endossando seu discurso machista e preconceituoso.
Alguns usuários alertaram para este problema também. “Primeiro que desde o começo a Maura afirmou ser lésbica, desde o começo da novela eles vieram reforçando que ela seria lésbica e agora tá com um homem? Gente, tá tudo errado, o roteirista não soube montar a personagem. Era só ter dito desde o começo que ela era bi!”, opinou uma internauta. “Segundo Sol acaba ofendendo não só a nós, lésbicas, como também às bissexuais, que acabam sendo mais uma vez representadas como incapazes de serem fieis e de manter uma relação monogâmica”, escreveu uma terceira.
Nos resta agora torcer para que João Emanuel Carneiro use o bom senso e não reforce a estigmatização e o preconceito, pois isso seria um desserviço para o país que mais mata LGBTs no mundo. Afinal, todos sabem o alcance e poder de influência que a telenovela brasileira tem. Sendo assim, é uma questão da responsabilidade social: a novela ainda está em construção, então é possível, sim, promover em Segundo Sol uma ampla e responsável discussão sobre orientações sexuais e desconstrução de gênero.