Antes de tudo, precisamos falar sobre essa má vontade com produtos brasileiros. Reclamamos da falta da originalidade das novelas, mas engolimos de maneira muito mais leve algumas séries norte-americanas bastante duvidosas. Se em algumas produções do tio Sam os defeitos não gritam de maneira tão agressiva, as nossas séries são analisadas no microscópio, como se não pudéssemos arriscar se não for para ser perfeito; mas se imitamos, não sabemos fazer. Foi assim com o cinema e ainda é assim com a televisão. Só isso justifica tantos comentários negativos relacionados a 3%, que está longe, bem longe de ser uma série marcante ou mesmo boa, mas não faz tão feio como andam dizendo.
Primeira produção totalmente brasileira da Netflix, distribuída em 190 países e adaptada de uma websérie de 2011, 3% traz uma premissa interessante e bastante assustadora. A história se passa num mundo distópico (ou nem tão distópico, como vemos no decorrer dos episódios) depois de diversas crises que deixaram o planeta devastado. No Brasil, a maior parte da população sobrevivente mora no Continente, uma espécie de grande São Paulo miserável, onde falta desde saneamento básico e energia até comida e educação.
Ao completar 20 anos de idade, todo cidadão tem direito de participar do Processo, uma seleção que oferece a única chance de morar em Maralto, um outro lugar no qual a sociedade é justa, tudo é abundante e há oportunidades de uma vida digna e rica. Mas somente 3% dos candidatos são aprovados anualmente. Os reprovados não podem tentar novamente. Para morar em Maralto, o candidato deve ser um trabalhador incansável, dedicado e se destacar intelectualmente. Não há cotas para negros ou qualquer tipo de minoria. A crítica não é suave e nem tem esse objetivo. Para os defensores da meritocracia, as situações vividas pelos personagens são provocativas. Ou ao menos deveriam ser.
Em um ano marcado por transformações políticas tão chocantes não somente no Brasil, mas no mundo, estrear uma série de ficção que fala justamente sobre a força da elite contra grupos protestantes é de um timing perfeito da Netflix. Michele (Bianca Comparato) é uma jovem que busca justiça após seu irmão ter sido assassinado durante o Processo. O plano da garota é passar pelo processo seletivo, uma inteligente analogia com o vestibular e as dinâmicas de emprego, e trabalhar como infiltrada dentro do Maralto. O líder do Processo, Ezequiel (João Miguel), é um homem sádico, que vende a propaganda do mundo ideal de forma muito eficiente. Não há dúvidas que de a sociedade só será justa para quem merecer.
O que há de mais grave em 3% é que os personagens que deveriam causar simpatia no público causam irritação.
A série traz pequenas joias em sua narrativa. Embora tudo seja colocado de forma óbvia, é interessante perceber que a divisão entre atores brancos e negros é quase a mesma e não há nenhum tipo de estranhamento em relação a isso, embora, no final, o cenário parece mudar. Homens e mulheres parecem estar em pé de igualdade nas oportunidades. Com enquadramentos bastante inspirados, graças a César Charlone, indicado ao Oscar de melhor fotografia por Cidade de Deus, a série tem um ritmo excelente, podendo ser facilmente consumida em apenas um dia. .
O que faltou, porém, foi atenção. Os problemas começam quando a gente esquece o tema central da série e passa a prestar atenção nos imensos furos no roteiro, nas atuações fracas e até em uma precária mixagem e edição de som.
Com um elenco predominantemente jovem, que parece ter saído diretamente de uma temporada de Malhação, a série entrega algumas surpresas, como Rodolfo Valente (Rafael), Vaneza Oliveira (Joana) e Bianca Comparato. O destaque fica por Mel Fronckowiak e sua Julia, que embora tenha participado de apenas um episódio, conseguiu aprofundar sua personagem de maneira que nenhum dos outros atores conseguiu.
Entretanto, boa parte do elenco de apoio é bastante sofrível, mesmo problema encontrado em Supermax. Fica difícil criar empatia com diálogos expositivos demais, porque os roteiristas mostram que não confiam no público. Se os diálogos são ruins, colocá-los na boca de atores não muito eficientes apenas maximizam os defeitos. Ainda assim, nada justifica a falta de cuidado com o som, quando várias vezes os personagens parecem estar dublando eles mesmos ou quando há uma falta de sincronia entre o som e a imagem. Há, ainda, uma direção de arte nada original. O cenário futurístico abusa do branco, espaços amplos e telas de computador imensas, fora alguns elementos sem sentido algum, como uma ampulheta com água e sabão. O figurino decepciona, especialmente no núcleo dos mais pobres, que tenta dar aos atores ares de moradores de rua, mas não acerta ao utilizar apenas tecidos rasgados ou sujeira no rosto, sem nenhum cuidado com a caracterização.
Mas o mais grave é que toda a crítica central da série – a desigualdade – é jogada pelo ralo quando, de repente, estamos torcendo mais para o “lado de lá” do que para o “lado de cá”. É óbvio que o público entende que todo aquele processo não é justo – as cenas à la Ensaio sobre a Cegueira fazem isso de maneira nada sutil -, mas os tais justiceiros que pretendem mudar o sistema não ganham muito tempo na tela e, quando ganham, são caricatos, mal interpretados e obrigados a carregar um texto fraco. Assim, o que há de mais ruim em 3% é que os personagens que deveriam causar simpatia no público causam irritação e os vilões acabam ganhando a compreensão. Afinal, nós temos uma vaga ideia de que Maralto é um paraíso para a elite, mas jamais vemos exatamente este lugar nem como isso funciona, embora seja uma estratégia de segurar a audiência para uma possível segunda temporada.
Ainda assim, para uma estreia, o Brasil não fez tão feio quanto dizem por ai. Mesmo com uma perceptível falta de recursos financeiros, 3% causa reflexão e apresenta um entretenimento de qualidade, relevância e que merece atenção, confiança e uma dose de paciência do público.