Poucos personagens da ficção televisiva caminharam por tantos abismos narrativos quanto Dexter Morgan, o serial killer de fachada impassível e alma tumultuada que marcou a era de ouro da televisão estadunidense. Morto e ressuscitado múltiplas vezes — no roteiro, na memória afetiva dos fãs e na cultura pop —, Dexter volta à cena em Dexter: Ressurreição, série lançada em 2025 que propõe uma nova camada à mitologia construída desde 2006. A série, no entanto, oscilando entre a tentativa de renovação e a dependência de fórmulas já gastas, acaba oferecendo um produto híbrido: um retorno que fascina nos detalhes, mas se esgota nos fundamentos.
Dessa vez, o palco não é mais a ensolarada e decadente Miami. A trama se desenrola em Nova York, metrópole fria, vertical e cheia de câmeras — cenário que serve como metáfora para um mundo em que todos veem tudo, mas ninguém realmente enxerga. Escondido sob nova identidade, Dexter ganha a vida como motorista de aplicativo pela empresa fictícia UrCar, pilotando seu carro com a mesma frieza com que, em outras épocas, manejava seus bisturis. Vive agora no porão de uma simpática família de imigrantes de Serra Leoa, que o acolhe sem saber de sua verdadeira natureza. Em paralelo, tenta observar de longe o filho, Harrison, que trabalha como manobrista em um hotel de luxo em Midtown — uma aproximação silenciosa que logo se complica quando o jovem se vê diante de um caso de abuso sexual envolvendo um hóspede influente.
Essa Nova York, apresentada em tons metálicos e iluminação artificial agressiva, reforça o caráter distópico da narrativa. A cidade parece sufocar seus personagens, e a série traduz isso com planos fechados, corredores labirínticos, prédios espelhados onde tudo é reflexo — inclusive a própria história da série. Não por acaso, Dexter continua tendo visões do pai, Harry (James Remar), e reencontra Angel Batista (David Zayas), ex-colega da polícia, agora envelhecido, mais cínico e desconfiado. Nada muda de verdade: tudo se dobra sobre si mesmo, como num ciclo vicioso.
O núcleo mais inusitado — e, paradoxalmente, o mais revigorante — surge com a entrada de Peter Dinklage, em uma atuação deliciosamente exagerada como um bilionário excêntrico e obcecado por crimes reais. Sua mansão é um verdadeiro altar para serial killers, que ele trata como troféus e fetiches de sua própria perversidade colecionista. Dinklage interpreta esse milionário como um dândi doentio, ao mesmo tempo hilário e ameaçador — quase um supervilão saído de uma graphic novel.
É nesse universo que surge Charley, interpretada com precisão cirúrgica por Uma Thurman, em um papel que remete, de forma calculada, à sua Beatrix Kiddo de Kill Bill. Charley é a assassina de aluguel do bilionário, uma figura enigmática e contida, que transita entre festas de gala e execuções silenciosas com a mesma naturalidade. A série evita transformá-la em antagonista clássica; ao contrário, sua presença é quase fantasmagórica, surgindo nos momentos certos, com gestos mínimos e olhares que dizem mais do que palavras. Ela é a verdadeira “sombra elegante” da temporada — um contraste direto com o estilo ritualístico, quase primitivo, de Dexter.
É nesse universo que surge Charley, interpretada com precisão cirúrgica por Uma Thurman, em um papel que remete, de forma calculada, à sua Beatrix Kiddo de Kill Bill.
Mas é nos conflitos não resolvidos com o filho que a série parece tentar encontrar seu novo eixo dramático. Harrison, vivido por Jack Alcott, permanece como uma promessa não cumprida. A série ensaia uma passagem de bastão, mas logo recua, relegando o jovem a subtramas genéricas — perseguição policial, dilemas morais, romance incipiente. Há ali uma tentativa de discutir o legado da violência, o trauma hereditário, a impossibilidade de ruptura com um passado sangrento. Mas tudo é subjugado pelo magnetismo de Dexter, que continua no centro, como se a série, à semelhança de seu protagonista, não conseguisse deixar o vício de lado.
Dexter: Ressurreição traz ainda episódios com participações especiais que servem de atração paralela: Neil Patrick Harris e Krysten Ritter aparecem como assassinos carismáticos, convidados de luxo para brincar com o tom da série e dar alguma variedade a uma estrutura narrativa que, no fundo, permanece inalterada. A cada novo “ritual”, o plástico transparente volta a ser estendido, a faca afiada desliza com precisão, e os olhos de Dexter, frios e atentos, confirmam que, por mais que o mundo mude, seu código permanece o mesmo.
Visualmente caprichada, com direção de arte elegante e ritmo mais contido do que nas temporadas originais, a série funciona melhor quando aceita o próprio envelhecimento — quando assume a melancolia de seu personagem e não tenta reviver a juventude com músculos artificiais. Michael C. Hall, agora mais contido, mais sombrio, parece entender isso: entrega um Dexter menos sádico e mais reflexivo, carregando o peso de suas decisões no corpo e no olhar.
No fim das contas, Dexter: Ressurreição é fiel ao que promete no título: uma volta dos mortos. Só que nem toda ressurreição é um renascimento. Há algo de zumbi nesse retorno — algo que anda, fala e mata como antes, mas que perdeu parte da alma. E talvez seja essa a grande ironia da série: a de querer reapresentar um monstro ao mundo, sem perceber que o mundo já seguiu adiante.
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