Poucas séries conseguem ser perfeitas. Talvez nenhuma. Mas Fleabag se aproxima muito dessa marca. Escrita, produzida e dirigida por Phoebe Waller-Bridge, a comédia britânica é uma das coisas mais impressionantes em termos narrativos já vistos nos últimos anos na televisão. Não é para menos que o nome da roteirista e atriz está crescendo cada vez mais no meio cultural. Além de Fleabag, a inglesa de 33 anos é a criadora da ótima Killing Eve, está escrevendo o próximo 007 (a pedido de Daniel Craig) e já tem uma outra série engatilhada, agora para a HBO, chamada Run. Também podemos vê-la na Netflix na série Crashing, também sua criação.
Mas voltemos a Fleabag. Criada a partir de um monólogo feito para o teatro, a série conta a história de uma mulher (Phoebe Waller-Bridge), uma jovem adulta lidando com problemas quase universais sob o ponto de vista feminino: problemas de relacionamento, frustração sexual e profissional e conflitos familiares. Ela vive em Londres, administra um café que está quase falindo, e está tentando, sozinha, superar a dor do luto após sua melhor amiga, e sócia no café, cometer suicídio (acidentalmente). No meio de tudo isso vemos Phoebe se relacionar com sua tensa irmã Claire (Sian Clifford), uma executiva de sucesso, seu cunhado escroto Martin (Brett Gelman), seu pai, interpretado por Bill Paterson, e sua madrasta megera, papel da sensacional Olivia Colman, ganhadora do Oscar de melhor atriz este ano pelo longa A Favorita.
Essa é apenas a sinopse de uma série com apenas duas temporadas de seis episódios cada. Mas é difícil falar sobre os motivos de Fleabag ser tão boa, porque parte da qualidade da série é saber falar com o público de maneira ímpar. E ela, de fato, fala com quem a assiste. De forma brilhante, a protagonista quebra a quarta parede (termo que vem do teatro para explicar a parede imaginária que separa os atores do público) e acaba se comunicando conosco de uma forma absolutamente intimista. Esse recurso, claro, não é nenhuma novidade em filmes e séries, mas a forma como Phoebe faz parece diferente de qualquer coisa que nós já assistimos na TV.
Fleabag é uma obra completa, sem nenhum sobra, falha ou exageros.
Solitária, deprimida e utilizando o sexo para enfrentar os diversos traumas de sua vida, a personagem aparentemente não tem amigos dentro da série, mas tem o público. Nós, portanto, acabamos conversando com a protagonista em todos os momentos, sempre de forma orgânica, sem nunca parecer forçado. Em todos os momentos, ela parece antevir o que nós estamos pensando e acaba brincando, flertando com a câmera, olhando para nós a fim de compartilhar uma agonia, um sentimento ou um segredo que somente nós (e ela) sabemos. Com isso, nós gargalhamos, nos preocupamos e choramos com seus comportamentos, ao menos aqueles em que ela nos deixa ver.
Assim como diversas pessoas na vida real, Fleabag é uma mulher encantadora e engraçada, que parece fazer todo mundo rir e ilumina os lugares por onde passa, mas aos poucos, quando já criamos uma confiança mútua, começamos a ver que, no fundo, ela carrega dores e segredos que a fazem repetir comportamentos destrutivos, ao mesmo tempo que vai afastando todo mundo que queira ajudá-la.
Phoebe Waller-Bridge consegue capturar momentos do cotidiano que nós só percebemos quando vemos dramatizados na tela. Por isso, expressões faciais, modos de falar e constrangimentos universais são postos na tela quase como um espelho para o público. O primeiro episódio da segunda temporada traz um jantar em família tão desastroso, e ao mesmo tempo tão identificável, que fica difícil não nos colocarmos sentados naquela mesa. Os atores estão tão alinhados com o ritmo dos diálogos e com seus personagens que as cenas mais parecem uma dança, ou uma peça de teatro, em que os atores sabem exatamente o que fazer em cada segundo. É tudo tão rápido que fica difícil acompanhar cada detalhe da cena, mas tudo ali é pensado, orquestrado e funcional.
Assim como Please Like Me, Fleabag aborda questionamentos muitos difíceis, tanto para a personagem quanto para o público, tudo embalado numa aparente série leve, mas que de leve não tem nada. Não é raro a protagonista tentar se livrar do nosso próprio olhar, fugindo ou mudando de posição em cena para que não a julguemos. Ao mesmo tempo, ela nos olha sempre com um olhar cúmplice, quase dizendo: “Eu sei o que você está pensando”, o que nos tira da zona de conforto de público passivo, incomoda, faz a gente repensar.
Por tudo isso, Fleabag é uma obra completa, sem nenhum sobra, falha ou exageros. É tão genial que, quando termina, parece que perdemos um amigo próximo. É uma série da qual eu nem sabia que precisava tanto.