De volta às telas, a série Nurse Jackie despede-se do público em sua sétima e derradeira temporada e, desde já, aponta que será lembrada pela narrativa ousada e pelos personagens atípicos. Chega a causar certo estranhamento pensarmos que a história da enfermeira Jackie tenha durado longos seis anos, visto que a protagonista (vivida magistralmente pela atriz Edie Falco, mais famosa por encarnar Carmela Soprano em The Sopranos) é capaz de motivar ódio e rejeição na mesma medida em que cativa o público.
Para os que não conhecem a trama: Nurse Jackie centraliza-se na vida da enfermeira Jackie Peyton e na rotina de seus colegas em um hospital público de Nova York. Destoando de outras séries que discorrem sobre a temática da medicina (como House, ER e Grey’s Anatomy), nesta os holofotes estão sobre os enfermeiros, saídos da condição de figurantes e aqui assumindo protagonismo frente a médicos não muito brilhantes. Quem move este universo são os árduos trabalhadores das “coxias” que, muitas vezes, resolvem os erros e mesmo conhecem mais sobre medicina do que os doutores. Os médicos apresentados na trama de Nurse Jackie sempre aparecem de alguma forma negativa: são arrogantes, incompetentes, vaidosos, superficiais.
Em Nurse Jackie, nada é simples ou óbvio. A própria personagem Jackie é apresentada aos espectadores por meio de uma dualidade indissociável, trabalhada desde a abertura e os anúncios publicitários do seriado, em que sua imagem é frequentemente associada à Virgem Maria.
Desde o primeiro episódio, veiculado em 2009 pelo canal Showtime, a personalidade difícil de Jackie foi esclarecida ao espectador. A enfermeira é a mais experiente entre os profissionais do hospital. Sua ética é bastante clara: é preciso fazer qualquer coisa para garantir o bem estar dos pacientes, sem olhar para suas condições, suas reputações ou seu passado. Não importa se é uma prostituta ou um padre que adentra as portas do hospital, Jackie fará tudo para garantir o melhor atendimento a todos.
Na vida pessoal, Jackie é bem casada com um homem mais jovem, bonito e trabalhador, com quem tem duas belas meninas. Sua família a recebe com amor ao fim de cada expediente extenuante. Mas logo a complexidade toma a cena: sem nenhuma razão aparente, Jackie mantém um namoro com o farmacêutico do hospital (o ator Paul Schulze, que vivia um padre em The Sopranos, encarregado de dar aconselhamento espiritual à família de mafiosos, e cuja tensão sexual com Carmela jamais chega a se resolver durante a série). É o namorado que sustenta o vício de Jackie por remédios, facilitando seu acesso às drogas controladas da farmácia do hospital. Sem conflitos visíveis, Jackie engana a todos: marido, namorado, filhas, colegas e amigos.
Em Nurse Jackie, portanto, nada é simples ou óbvio. A própria personagem Jackie é apresentada aos espectadores por meio de uma dualidade indissociável, trabalhada desde a abertura e os anúncios publicitários do seriado, em que sua imagem é frequentemente associada à Virgem Maria – ela é ainda devota à santa e, em todas as temporadas, uma medalha em sua corrente é uma de suas indumentárias fixas. O sagrado e o profano se encontram a todo instante nesta dramédia que oferece ao seu público um mergulho na realidade de um viciado que, aos poucos, parece negociar tudo o que tem em prol da manutenção de sua dependência.
Claro está que a qualidade do seriado se deve em grande parte pelo elenco, com bons atores como Peter Facinelli, que interpreta o imaturo doutor Fitch Cooper, que tem uma bela evolução ao longo da trama; Merritt Wever, responsável pela ingênua enfermeira Zoey Barkow, que também encara um amadurecimento ao longo das temporadas, e a veterana Anna Deavere Smith, que atua na pele da temida chefe do hospital Gloria Akalitus. Mas a estrela certamente é Edie Falco, uma atriz brilhante que já teve oportunidade de trazer vida a personagens absolutamente complexas, como a perua Carmela de The Sopranos, situada em um eterno conflito entre ser cúmplice da vida criminosa do marido mafioso e entender que não havia outra opção para uma descendente de italianos, criada para constituir família e fruir de um bom casamento; ou a carcereira Diane Whittlesey, da cultuada Oz, que impunha respeito em um universo de homens violentos para poder sustentar a filha e a mãe doente.
A Jackie vivida por Edie Falco certamente se insere na lista de personagens complicados, como o Walter White de Breaking Bad e Don Draper de Mad men, que têm consolidado uma geração de seriados revolucionários, haja vista a maturidade de suas tramas (tema abordado na obra “Homens Difíceis”, de Brett Martim). A qualidade da trama de Nurse Jackie se deve muito aos rumos do roteiro dados à personagem principal e ao talento emprestado por Edie à protagonista. Ao longo das sete temporadas, somos convidados o tempo todo a reconhecer quando Jackie finalmente chegará ao fundo do poço – e Jackie toda vez nos engana e prova que o buraco é mais embaixo. Até que ponto continuaremos a perdoá-la por todos os seus erros? Este parece o grande enigma a ser desvendado ao fim da série.
Em clima de despedida, Nurse Jackie deixa como legado mais uma grande obra que tem consolidado a televisão como um veículo privilegiado para se trabalhar com tramas maduras, sofisticadas e que exigem reflexão por parte do público. Resta agora torcermos que esta leva de grandes seriados continue proliferando e que o talento de Edie Falco continue sendo bem aproveitado.
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