Em tempos de saturação distópica no audiovisual contemporâneo, O Eternauta, minissérie argentina criada por Bruno Stagnaro e disponível na Netflix, emerge como uma anomalia reveladora. Longe da lógica espetacular das ficções apocalípticas hegemônicas — muitas delas ancoradas em roteiros apressados e efeitos estéticos anestesiantes —, esta adaptação do clássico quadrinho homônimo de Héctor Germán Oesterheld e Francisco Solano López recusa os atalhos e investe na densidade, na hesitação, no silêncio. Não se trata de apenas narrar o fim do mundo, mas de insistir na pergunta: o que resta de humano quando tudo ao redor se esfacela?
A série começa com uma Buenos Aires devastada por uma nevasca tóxica que mata ao contato, provocando um extermínio quase total da população em poucas horas. O ponto de partida, que poderia conduzir a uma sucessão de cenas de ação e desespero, é conduzido com uma contenção quase ritual. O que se vê, sobretudo nos três primeiros episódios, é a instauração do tempo da catástrofe: não o tempo cronológico da destruição, mas o tempo subjetivo da incerteza. Há uma suspensão do cotidiano, um estado de deriva no qual os corpos, ainda vivos, oscilam entre o instinto de sobrevivência e a paralisia da perda.
Juan Salvo, interpretado com sobriedade por Ricardo Darín (de O Segredo de Seus Olhos), não é um herói nos moldes tradicionais. É um homem comum, grisalho, já um tanto fatigado, que apenas decide continuar. Sua força reside menos em uma capacidade de ação extraordinária do que em sua abertura ao outro. Ele não lidera com carisma ou bravura, mas com escuta, dúvida e uma insistência fraterna que atravessa toda a narrativa. O que move O Eternauta não é a busca por salvação individual, mas a construção gradual de um laço comunitário, ainda que precário, em meio à ruína.
Essa ruína, por sua vez, não é apenas figurativa. A Buenos Aires branca, silenciosa e abandonada é também um palimpsesto de traumas históricos. A série não explicita, mas evoca — com notável sutileza — camadas da memória argentina que atravessam a ditadura militar, os desaparecimentos forçados, a instabilidade econômica crônica e o sentimento de isolamento frente às potências globais. Ao resistir à tentação de universalizar o apocalipse, Stagnaro escolhe inscrevê-lo num território marcado por suas especificidades políticas e culturais. A catástrofe não é uma abstração global, mas uma experiência sul-americana: em um país de infraestrutura precária, desigualdades persistentes e cicatrizes abertas, o fim do mundo é menos uma ficção e mais uma hipótese constantemente ensaiada.
Nesse sentido, a adaptação respeita — e aprofunda — a dimensão alegórica da obra original, criada ainda sob a sombra do peronismo e das tensões geopolíticas da Guerra Fria. Não é casual que Oesterheld tenha sido assassinado pela ditadura argentina, tornando-se, ele próprio, uma espécie de mártir da ficção política latino-americana. Em sua versão televisiva, O Eternauta se apropria dessa herança não como reverência nostálgica, mas como reativação crítica. Ao preservar o imaginário do quadrinho e transportá-lo para uma linguagem audiovisual contemporânea, a série propõe uma reflexão sobre o trauma, o desaparecimento e a ética da memória. A resistência não está na força física ou na tecnologia — como sugerem tantos blockbusters estadunidenses —, mas na permanência do vínculo, na persistência da linguagem e na possibilidade de escuta em meio ao colapso.
Há, claro, uma virada ficcional mais evidente à medida que a temporada avança. As causas da neve tóxica se esclarecem, outras forças se revelam, e o componente de ficção científica ganha peso. Mas mesmo nas cenas em que o sobrenatural ou o extraterrestre se insinua, O Eternauta permanece firmemente ancorado na experiência humana. Os efeitos visuais são eficazes, mas nunca dominam. O foco continua sendo o corpo, a pele, o medo, o gesto. Essa escolha formal é também uma tomada de posição: a série rejeita a espetacularização do fim do mundo para reafirmar a centralidade do olhar e da escuta. Nada aqui é gratuito. Tudo carrega densidade ética e histórica.
Talvez o maior mérito da série esteja, portanto, na forma como recusa o heroísmo e aposta na hesitação. Cada gesto de Juan Salvo é filmado como um acontecimento moral.
É por isso que O Eternauta se afirma como uma obra contraintuitiva em sua estrutura narrativa. Ao invés de acelerar, desacelera. Ao invés de entregar respostas, propõe inquietações. Ao invés de buscar catarse, oferece complexidade. Estamos mais próximos do realismo especulativo do que da ficção científica convencional. O que se desenha não é um futuro imaginado, mas uma radicalização do presente. A catástrofe, afinal, já começou — e os personagens, como nós, estão apenas tentando entender o que fazer com ela.
Talvez o maior mérito da série esteja, portanto, na forma como recusa o heroísmo e aposta na hesitação. Cada gesto de Juan Salvo — cada escolha entre salvar ou seguir adiante, acolher ou desconfiar — é filmado como um acontecimento moral. Há uma filosofia da lentidão, uma ética da escuta e um humanismo silencioso que atravessa toda a mise-en-scène. Em vez de respostas, o que O Eternauta oferece é a possibilidade do reconhecimento: do outro, do trauma, do cuidado.
Ao final da temporada, o que permanece não é a grandiosidade do plot ou o impacto visual, mas a sensação de ter acompanhado uma travessia. Não uma jornada de superação, mas de aprendizagem. Uma travessia feita de perdas, dúvidas e pequenas alianças que resistem mesmo diante do irremediável. Em uma era em que tantas distopias se tornaram entretenimento esvaziado, O Eternauta reapresenta o fim do mundo como um gesto político. E, talvez mais importante, como uma forma de lembrar que o que nos define não é a catástrofe em si, mas a maneira como escolhemos habitá-la.
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