Quando a Star+ lançou em 2022 a primeira temporada de O Rei da TV, não foram poucos os que reclamaram da série, que teria muitas imprecisões históricas, exageros ou, ao contrário, uma produção pobre para retratar uma emissora do tamanho do SBT. Contudo, penso que a graça dessa “série-biografia não autorizada” de Silvio Santos reside no fato que ela embarca na persona algo tresloucada – que estende a todo o “universo SBT” – que o maior apresentador do Brasil criou para si.
Por isso, fazia todo sentido que as histórias de SS fossem trespassadas por um devaneio colorido em que ele via pessoas do seu passado e do presente, prestando contas com as vidas com que cruzou durante a construção de seu império empresarial. O brilho fosforescente da série, com esse tom forçadamente sorridente de todos os asseclas do apresentador, é completamente consonante à jornada de um homem que controlou a própria narrativa do jeito que pode.
Na segunda temporada de O Rei da TV, os criadores, de certa forma, baixam ou pouco a bola no tom meio lisérgico, mas continuam assumindo a liberdade de recontar esta longa história de forma não convencional. Silvio Santos (que aparece aqui só na versão mais velha, interpretada por José Rubens Chachá) está mais “lúcido”, digamos, mas os causos da sua biografia mudam de ordem ou de lógica – sem que haja grande problema com isso.
Explico. A segunda temporada foca, principalmente, em dois fatos principais da biografia do apresentador: o sonho fracassado da carreira política, em 1989, e a quase falência por causa do escândalo do Banco Panamericano, em 2010. Daria então para dizer que há um ganho ao centralizar nestes que talvez sejam os dois momentos mais baixos da carreira de Silvio.
Em meio a essas duas tramas – que são contadas concomitantemente, num ir e vir cronológico – aparecem histórias tangenciais igualmente interessantes: o sequestro de Patrícia Abravanel e de Silvio Santos, a separação temporária de Iris Abravanel e, principalmente, as famosas guerras pela audiência no domingo com a Globo.
Trunfos da segunda temporada
É fato que há uma grande defasagem no registro da história da TV – em parte, por ser considerada no Brasil um veículo menor em qualidade, ainda que inegavelmente seja o que atinge a maior camada da população. Por isso, assistir a O Rei da TV é uma maneira bastante interessante de adquirir conhecimento histórico sobre o que ocorreu na trajetória das emissoras brasileiras, criando uma memória audiovisual (ainda que parcial e nem sempre precisa) de como estes capítulos transcorreram.
Os famosos tempos das guerras por audiência entre o Domingão do Faustão e o Domingo Legal, de Gugu Liberato, são bem elucidados e explicados ao espectador.
Por isso, esta é uma série que pode trazer informações mesmo a quem não gosta ou não se interessa muito por Silvio Santos. E um dos ganhos da segunda temporada é justamente se descolar um tanto dele, trazendo novos personagens relevantes à trama e desdobrando alguns episódios.
Como mencionei antes, talvez o ponto alto desta temporada seja a forma com que ilustra como a Globo tentou destronar Silvio Santos a partir da contratação de um novato, Fausto Silva, que fazia sucesso na Bandeirantes. Mostra ainda o processo de produção extremamente elaborado para o lançamento do Domingão do Faustão, em detrimento do amadorismo dos programas de Silvio Santos, que surfavam na inércia da audiência e tiveram que rebolar.
Os famosos tempos das guerras por audiência entre o Domingão do Faustão e o Domingo Legal, de Gugu Liberato, são bem elucidados e explicados ao espectador, com direito a menção a vários momentos “memoráveis” da baixaria televisiva, como o sushi erótico do Faustão, a ereção ao vivo de Jean Claude Van Damme, a banheira do Gugu e a fracassada entrevista falsa que Gugu fez com integrantes do PCC.
Além disso, a temporada joga mais luz em outras personagens icônicas que rodeiam SS, especialmente sua mulher, Iris Abravanel (papel encarnado com muita competência por Leona Cavalli), e sua filha mais famosa, Patrícia Abravanel, que é notadamente exibida como mais “aparecida” que as outras. Não por acaso, é a que hoje substitui o pai nos programas.
Entra aqui também a questão das “liberdades poéticas” tomadas pelos produtores, diretores e roteiristas, pois há muitas imprecisões ou mesmo fatos criados, como Patrícia namorando um membro do grupo Ludo (que seria uma versão do Dominó ou do Polegar), gerenciado por Gugu, que dirige um videoclipe em que a filha de Silvio aparece. Nada disso ocorreu. Do mesmo modo, pode-se citar os equívocos (propositais) quanto a datas de eventos, aproximando fatos que aconteceram com distância histórica ou mudando mesmo a temporalidade deles.
As ausências sentidas
Entretanto, é muito difícil assistir a uma série que narra uma história ainda em curso e não se perguntar quanto às ausências. Já que há muitos personagens reais abordados ali, acaba restando um sentimento de falta pelos que não foram retratados e que foram fundamentais à construção do SBT.
Gente como Hebe Camargo, Jô Soares, Carlos Alberto de Nóbrega, Mara Maravilha ou não aparecem ou são apenas mencionados em algum momento. O corpo de jurados do Programa Silvio Santos tem uma participação fundamental à trama desde a primeira temporada, mas é estranho notar que ele é reduzido a poucos nomes, dando uma certa sensação de pobreza quando vemos o palco.
A trama do Banco Panamericano, por mais que percorra a temporada do início ao fim, parece mal desenrolada, culminando na história confusa de uma jornalista que entrevista Silvio Santos e o “trai” – não se entende bem como ou com qual propósito.
Contudo, alguns atores estão perfeitos nos seus papéis. Destaco especialmente as interpretações inspiradas de Maidê Mahl como Elke Maravilha e de Romis Ferreira como Ronald Golias, que parecem ter encarnado estas lendas televisivas em cena. Também merece menção o trabalho preciso e tocante de Diego Montez, que vive seu pai, Wagner Montes, como repórter do Aqui Agora.
Já havia comentado isso quanto à primeira temporada, e repito: O Rei da TV acende o desejo de que as plataformas de streaming invistam mais em séries e filmes criados a partir de figuras icônicas da TV, cujas histórias merecem ser registradas para as novas (e velhas) gerações.
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