Lançada pela plataforma Star+, a série O Rei da TV, que aborda a vida do apresentador Silvio Santos, tem levantado mais repercussão sobre as opiniões em torno dela do que sobre a série em si. É claro que boa parte deste buzz se dá por fazer uma biografia não autorizada (ou seja: que corre longe da abordagem chapa branca) de uma celebridade ainda viva.
É, no mínimo, uma estratégia corajosa. E não faltam matérias dando conta das impressões da família de Silvio – em especial, das cinco filhas que ele tornou famosas ao citá-las em seus programas de TV. Silvia Abravanel, “a filha número 2”, opinou que a série é “nota -100” e “que a impressão que dá é que foi de maldade”. Já Daniela Beyruti, “a filha número 3”, disse em uma rede social que O Rei da TV é uma “perda de tempo”. E, digamos, ameaçou: “aguardem uma produzida por nós”.
Assisti à primeira temporada de O Rei da TV e considerei uma série muito divertida e inspirada dentro de sua proposta: a de brincar com a vida de um sujeito que sempre se construiu intencionalmente como um mito – ou seja, com algo próximo da ficção. Conforme revelado na obra Topa Tudo Por Dinheiro, do jornalista Maurício Stycer, Silvio sempre teve extremo controle sobre sua imagem e teceu cada detalhe de como sua persona pública seria construída.
Apenas para se ter uma ideia, isso significou, ao longo de sua carreira, que ele financiou biografias (incluindo aqui uma história em quadrinhos que falseava acontecimentos sobre sua vida) e escondeu o seu casamento com sua primeira mulher, Cidinha (situação que foi bem explorada na narrativa de O Rei da TV).
Com tudo isto, considero irônico que alguns críticos cobrem realismo da série ou a adjetivem como caricata e exagerada – uma vez que esta parece ser justamente a proposta original dos criadores Marcus Baldini, André Barcinski e Ricardo Grynszpan. Penso que O Rei da TV tem como intenção pintar a história de um mito nas exatas cores (fosforescentes e gritantes) com as quais ele se construiu para o seu público.
‘O Rei da TV’: fronteiras entre verdade e ficção
Considero irônico que alguns críticos cobrem realismo de O Rei da TV ou que adjetivem a série como caricata e exagerada
Mas, afinal, o que se pode fazer em um produto de não-ficção, tal como, supostamente, é O Rei da TV? Obviamente, esta não é uma pergunta que contempla uma resposta simples ou fácil. Mas para analisar esta questão, o caminho mais viável talvez seja discutir como ela se categoriza.
Os criadores declararam desde o início ser esta uma série que faz uma livre leitura da vida de Silvio Santos, e que não foi baseada em nenhuma biografia específica (ele tem ao menos seis, entre autorizadas e não-autorizadas).
Por isso, há muitos recursos dramáticos claramente inventados – como, por exemplo, a associação com a história bíblica das pragas do Egito ou o retrato de alucinações em que Silvio repassa pontos cruciais de sua vida (este último recurso, aliás, me pareceu ter intertextualidade com os devaneios de Assis Chateaubriand na cinebiografia Chatô – O Rei do Brasil, de Guilherme Fontes)
Em entrevista ao Yahoo!, o roteirista da série, Mikael de Albuquerque, destacou que vê as críticas com naturalidade, e que a intenção da série “foi endeusar ninguém, mas construir personagens humanos, com as virtudes e defeitos que todos temos”. Isto é claramente visto em O Rei da TV, por isso considero injustas algumas críticas que li dizendo que Silvio Santos apareceria como um grande manipulador e Gugu Liberato como um traidor do SBT.
O episódio que levaria a esta suspeita envolve as cenas que mostram Gugu assinando com a TV Globo, onde poderia crescer mais profissionalmente – mas Silvio se dirigiu até Roberto Marinho, de maneira um tanto quixotesca, e desfez o contrato. Este acontecimento está relatado por Gugu durante uma entrevista a Fábio Porchat de forma muito semelhante ao que foi mostrado.
O que claramente se pode imaginar que sejam as chamadas “liberdades poéticas” são alguns detalhes que entremeiam a produção. Quando Silvio Santos e seu empresário Stanislau vão atrás do general João Figueiredo, para cortejá-lo em busca de uma concessão de TV, ele menciona sua famosa frase do “prefiro cheiro de cavalo ao cheiro de pobre” (o que, obviamente, não ocorreu naquela ocasião).
E no famigerado encontro entre Silvio e Roberto Marinho em que discutem o contrato de Gugu, o dono da TV Globo adverte o concorrente para tomar cuidado com a Record TV, pois a emissora logo se tornaria o segundo lugar na audiência da TV aberta (diálogo muito improvável de ter ocorrido, até pela questão do anacronismo entre os fatos).
Com tudo isso, pode-se dizer que O Rei da TV, ao tomar a frente para se tornar uma produção claramente provocativa e exagerada – e, por isso mesmo, corajosa – acerta em cheio ao não querer criar uma obra respeitosa demais, no mal sentido da palavra. O Silvio Santos em tela (vivido bravamente pelos três atores José Rubens Chachá, Mariano Mattos Martins e Guilherme Reis) faz jus ao Silvio Santos circense que conquistou o Brasil.
Por fim, é de se esperar que esta obra abra caminho para outras biografias audiovisuais de figuras importantíssimas da cultura popular brasileira. Adoraria ver as histórias de Chacrinha, Chico Anysio, Bolinha, Chatô e tantos outros indo parar nas telinhas.
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