Em um cabaré decadente em alguma cidade qualquer, um bando de artistas mambembes encenam seus números sob a tutela de uma madame aborrecida (a lendária Teuda Bara). É tudo muito rastaquera, mas extremamente divertido. Até que, aos poucos, ao som de piseiros e muita música brega, notamos que há mais complexidade nessa festa hedonista. Cabaré Coragem, espetáculo do Grupo Galpão (talvez, hoje, a principal companhia teatral do país), é pura frivolidade e diversão do início ao fim.
Mas essa não é uma celebração qualquer, mas, sim, uma peça gerida e parida por um grupo que presta reverência, desde o seu surgimento, ao dramaturgo alemão Bertold Brecht – que está presente o tempo todo nessa montagem, seja em referências às suas obras, seja em menções nominais. Ou seja, este é um cabaré em que a arte do povo está profundamente atravessada pela luta de classes.
O que se tem no palco, conforme vamos captando, é uma série de números encenados por artistas famintos, que vendem o almoço para comprar o jantar. Mas isso não os impede de estarem presentes na dança da vida, ainda que os performers, em certo momento, esclareçam: primeiro o estômago; depois a arte.
Para o Grupo Galpão, a arte que presta é a arte engajada, a que esclarece os meandros da opressão social e dá condições para que o povo se empodere e se rebele. Por isso, não por acaso, o cabaré tem o Gangorra’s Bar, e uma das artistas (vivida por Lydia Del Picchia, brilhante) entrega uma performance arrasadora de “Xibom Bombom” (aquela do “Quero me livrar dessa situação precária/ Onde o rico cada vez fica mais rico / E o pobre cada vez fica mais pobre/ E o motivo todo mundo já conhece / É que o de cima sobe e o de baixo desce”).
Críticas à crise da arte e à ascensão das redes sociais

Cabaré Coragem consegue unir um espetáculo extremamente divertido com a melancolia que envolve o fato de que a arte mambembe e orgânica está em decadência.
Cabaré Coragem consegue unir, com equilíbrio e beleza, um espetáculo extremamente divertido, em que o público é convidado o tempo todo a fazer parte, com a melancolia que envolve o fato de que a arte mambembe e orgânica está em decadência. O cabaré de Madame está em baixa, o que traz a ela uma desculpa para explorá-los. “Quem é que vai querer dar emprego para um bando de artistas velhos?”, vocifera Teuda Bara.
Há uma crítica dura ao mundo contemporâneo que valoriza o clique, as reações emocionais, a discussão rara. Enquanto os personagens estão o tempo todo provocando o povo (aqui presente no público) a pensar sobre a sua condição, há também muito deboche. Em uma das melhores cenas, brinca-se com o famoso truque da Monga, em que uma mulher se transformava em macaca no circo a partir da ilusão de ótica. No espetáculo, a atriz Simone Ordones se transforma em Patrícia Kiss, uma mulher monstruosa, defensora dos “valores da família”, e que só se aquieta quando recebe joias da Arábia.
A retórica marxista surge aqui carregada pelo humor e pela festa, carregando a mensagem por meio do discurso leve, mas potente. A sequência de números vai esclarecendo que todos os buracos são mais embaixo – e embora Madame seja exploradora, ela é também uma Mãe Coragem (Brecht sempre presente) explorada e lutadora.
Com um belíssimo espetáculo, o Grupo Galpão faz jus mais uma vez à sua reputação e nos lembra que a arte pode ser ferramenta de transformação política e, ainda assim, ser leve, mundana. E tudo sendo “vulgar sem ser sexy”.
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