Existe hoje uma grande onda de atrações (dentre filmes, livros, séries, podcasts) que podem ser encaixados no gênero true crime – ou seja, que recontam casos de crimes famosos e outros nem tanto assim. A julgar pelo sucesso que fazem, dá para dizer que há um enorme público disposto a consumir (e ser seduzido) por essas narrativas que, geralmente, giram em torno de assassinatos.
O que leva as pessoas a gostarem de histórias reais sobre sujeitos assassinados é, de certa forma, um mistério – embora não faltem hipóteses para tentar explicar o fenômeno. Muitos destes consumidores falam sobre a possibilidade de “entrar na mente de criminosos”, revelando uma certa fetichização de pessoas criminosas (não por acaso, existe uma imensa literatura de entretenimento sobre psicopatas).
Outra pista, bastante óbvia, é pensar que o público de true crime não consome essas histórias pensando-as como casos reais, que aconteceram com pessoas reais, como elas mesmas ou algum parente seu. É só entrando no terreno da ficção que os fãs do gênero conseguem achar algum tipo de fruição de casos horrendos, geralmente envolvendo muito sofrimento – para os que morreram e os que ficaram.
A série documental Pacto Brutal, da HBO Max, que reconta o famoso assassinato da atriz Daniella Perez, em 1992, é um ótimo motivo para pensar em tudo isso. Primeiramente, porque ela escancara que não há nada de novo na febre true crime. Como a série deixa bastante claro, há 30 anos, o Brasil parou para acompanhar os episódios desse assassinato macabro de uma moça por motivo torpe (Guilherme de Pádua, seu colega de cena, teria problemas na verdade com sua mãe, Gloria Perez, autora da novela De Corpo e Alma, e estaria pressionando Daniella para que seu papel não sumisse do folhetim).
Muito já foi dito desta série da HBO Max que, em 5 capítulos, rememora um fato marcante na história do país e que esclarece, de maneira muito nítida, como se dá a presença de produtos de entretenimento na vida das pessoas. Vale lembrar que o crime ocorreu em 1992, época em que a internet doméstica nem engatinhava ainda.
A televisão – ainda mais em seu horário mais nobre, o da novela das oito na Globo – tinha absoluta centralidade na vida de boa parte da população. Como diz um dos entrevistados em Pacto Brutal, é como se os personagens da novela fossem parentes das pessoas de casa (fenômeno revivido recentemente, mas em proporções menores, com o remake de Pantanal).
Por isso, quando Daniella foi encontrada morta com golpes no peito, uma comoção nacional se desdobrou nos meios de comunicação de massa. Como Pacto Brutal retrata bem, em um levante histórico muito bem feito, cada pequeno acontecimento, por mais insignificante ou mentiroso que fosse, virava uma manchete que servia para vender jornais ou prender os espectadores na frente de telejornais policialescos.
Estava feita, portanto, a receita perfeita do true crime: um crime com características macabras, envolvendo pessoas conhecidas e alguns passados obscuros, além de assassinos bastante dispostos para performar em público e assentar um fascínio (ainda que mórbido) em torno de sua figura. Apresentado sempre carreirista (o que pode ser visto como uma característica possível a um psicopata), Guilherme de Pádua se tornou uma espécie de vilão nacional. Só que fora das novelas.
Os problemas do gênero true crime expostos em ‘Pacto Brutal’
Assistir ao rigoroso trabalho estabelecido na série da HBO me trouxe alguns sentimentos conflitantes. Obviamente, é muito comovente ver a dor desta perda na vida de tantos parentes de Daniella, mesmo depois de 30 anos. Seu marido na época, Raul Gazolla, que seguiu a vida e casou novamente, mostra-se extremamente emocionado ao lembrar da primeira esposa. E, claro, é muito surpreendente o verdadeiro trabalho hercúleo desempenhado por Gloria Perez na busca de pistas de um assassinato que, como vários depoimentos confirmam, parecia todo desenhado para nunca ser desvendado.
Mas o que realmente me pegou está nas estrelinhas: o relato do jornalismo sem limites que era realizado nesta época. Todo o caso Daniella Perez ilustra bem o que o jornalista Luís Nassif escreveu em seu livro chamado O jornalismo dos anos 90: “os anos 90 se constituíram em um período perigoso para o jornalismo. Abusou-se do chamado ‘esquentamento’ da notícia, método que levou o jornalismo aos limites da ficção. Em nome do espetáculo atropelaram-se princípios básicos de direitos individuais, chantagistas, para dossiês falsos. Não raras vezes, levou-se o país à beira da desestabilização política”.
De fato, fato e ficção se misturaram o tempo todo na morte de Daniella Perez – muitas vezes anunciada pelas revistas como “Yasmin” e seu assassino como “Bira”. As publicações reproduziram fotos românticas dos personagens, fundindo estes limites de maneira irreparável (eu mesma, que tinha 12 anos em 1992, tinha a memória de ouvir que Daniella e Guilherme tinham um caso).
Talvez a parte mais chocante seja a grande profusão de imagens de Daniella morta, deitada no mato, com os seios aparecendo e os olhos entreabertos. Da mesma forma que essas fotos apareceram nos jornais e sedimentaram para sempre esta visão, a cena do crime parecia em nada preservada: muitos familiares, famosos e até curiosos aparecem nas cenas de Pacto Brutal ao lado do corpo, sem qualquer cuidado por parte da polícia. Parece até mentira que tudo isto tenha acontecido – e por isso é importante termos uma série para lembrar.
O mais curioso é que todos – incluindo a Globo – tiraram uma casquinha do caso. Vemos cenas (muitas) de reportagem do popularesco Aqui Agora, do SBT, das muitas revistas de novela que exploraram o tema e até de Glória Maria (que dá um testemunho em Pacto Brutal) entrevistando Guilherme de Pádua. Como diz-se no senso comum, o circo estava armado.
Trinta anos depois, é bastante fácil olhar Pacto Brutal com espanto em relação a tudo que se mostra, como se tivéssemos diante de algo do passado, que já não tem espaço entre nós. Mas estará tudo isto tão distante da atual sede por narrativas true crime?
A diferença entre o programa do ratinho e o gênero (?) "true crime" é a classe social da audiência. Só.
— Aline Passos (@linpjs) July 29, 2022
Como li em um tweet recentemente (reproduzido acima), é possível que o que separa as histórias true crime de programas como o do Ratinho seja a classe social da audiência. Se é que uma história de assassinato pode servir para alguma coisa, é de se esperar que Pacto Brutal nos ajude a tomar consciência disso.
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