E então, um dia, houve Sandman. Um sujeito chamado Neil Gaiman criou o rei do mundo dos sonhos em 1989, e, 33 anos, a cultuada série de quadrinhos ganhou vida audiovisual como um projeto da Netflix. Sandman estreou em 2022 na plataforma e comoveu muitos fãs novos e antigos que puderam enfim testemunhar a história enigmática e perturbadora de Lorde Morpheus (ou Sandman, ou Sonho, alguns de seus vários nomes). Ele é um dos sete Perpétuos, filhos da Noite e do Tempo, e que são entidades antropormórficas que simbolizam elementos que regem a vida humana (os outros irmãos são Destino, Desespero, Delírio, Destruição, Desejo e Morte).
A primeira temporada foi muito bem recebida pela crítica. Até que, três anos depois, a série Sandman chegou ao fim de forma precoce, com apenas duas temporadas. A versão oficial da Netflix, divulgada em janeiro de 2025, é que a série estaria sendo encerrada por ser uma produção muito cara. Mas soma-se a isso o fato de que seu criador, o cultuado escritor Neil Gaiman, envolveu-se em denúncias seríssimas de abuso sexual feitas por cinco mulheres, o que certamente colaborou para que a saga chegasse ao fim antes da hora (afinal, a HQ Sandman foi publicada em 75 capítulos).
Uma pena, realmente. Todos esses episódios podem explicar por que a última temporada de Sandman, diferente da primeira, soa irregular, ainda que guarde momentos brilhantes e comoventes. São várias linhas de roteiro que são desenvolvidas e deixadas pelo caminho (como a história de Sandman com a rainha Nada) ou a participação muito breve de Indya Moore (de Pose) como uma personagem trans interessante que definitivamente poderia ser melhor explorada.
Ainda assim, o mundo do Sonhar é repleto de luz e sombra. Mesmo com algumas falhas, a segunda temporada nos entrega momentos memoráveis que deixam bastante claro que não estávamos prontos para nos despedir de Lorde Morpheus.
‘Sandman’: uma despedida precoce
A segunda temporada começa quando Destino (personagem fascinante vivido por Adrian Lester) convoca os irmãos Perpétuos para comunicar o que leu em seu livro: um rei irá cair e o caos se instalará. Logo também descobrimos que Lúcifer (Gwendoline Christie) resolveu se “aposentar” de seu trabalho como líder do Inferno, o que faz com que Sonho (Tom Sturridge, que parece ter nascido para esse papel) tenha que mediar a situação e decidir quem assumirá o seu lugar. Por que é ele que precisa fazer isso, e não algum dos seus outros irmãos? Não nos é esclarecido.
Sandman foi uma daquelas séries que parecem estar ultrapassando as preocupações mundanas para tocar em espaços mais profundos de quem a assiste.
Isso dá margem para que transcorra um episódio que explica as formas pelas quais Sandman chega a tocar no sublime. Quando Lúcifer se retira, deuses de várias mitologias se apresentam no castelo de Lorde Morpheus para se candidatarem ao pleito. Entre eles, estão os deuses nórdicos (Odin e seus filhos Loki e Thor), as fadas, os representantes do caos e os outros anjos caídos, que participam de um jantar sinistro enquanto o deus do Sonho se decide. É aqui que desfrutamos do rico universo que une Sandman a outras obras de Gaiman, como Deuses Americanos, que também aborda a ideia de uma mitologia híbrida, em que várias crenças dos humanos convivem em pé de igualdade.
Mas não é apenas essa situação que Sonho precisa mediar. Há várias outras, como a de ter que ajudar a sua irmã Delírio (Esmé Creed-Miles) a encontrar Destruição (Barry Sloane), que resolveu abandonar o próprio reino, e cujo ato – por óbvio – provoca um rastro de destruição pelo caminho. Profundamente tomados por sentimentos humanos, esses deuses se questionam o tempo todo sobre o peso de suas responsabilidades, sofrendo mais do que, a princípio, se esperava deles. Além disso, a relação entre eles, pelo que aprendemos, é cheia de mágoas e arestas que precisam ser aparadas.

E talvez seja aí que apareça, por fim, a trama mais importante da segunda temporada, que unifica a vida de Sandman com um personagem importante da mitologia grega. Ele nos é apresentado como o pai de Orfeu (Ruairi O’Connor) o trágico cantor da voz mágica que desce ao Submundo para tentar resgatar sua esposa, Eurídice, mas cujo plano, como sabemos, dá errado.
Por ter descido ao Submundo, Orfeu é condenado a nunca mais poder voltar para lá. Ou seja, ele não pode morrer, por mais que tente (e ele realmente tenta), o que o coloca em uma situação bem difícil. O tormento de Sandman envolve então uma decisão digna de Orestes: o filho implora por milênios para que o pai o mate; mas, caso ele tope, será perseguido e morto pelas Fúrias por ter derramado sangue da família, que é o crime máximo entre os deuses.
A agonia de Sonho com a pressão por tomar decisões, das quais ele não pode fugir, é a tônica que perpassa toda esta temporada – que, diferente da primeira, foca mais nos Perpétuos do que nos mortais que os cercam. Essa é a força e a fraqueza dos episódios: ver o quanto personagens como Delírio e Destruição são nos apresentados, mas abordados ainda de forma superficial, deixando o desejo por uma continuidade que nunca ocorrerá.
É realmente uma pena, uma vez que havia muito material para explorar e continuar esse mergulho delicioso e perturbador no onírico. Sandman foi uma daquelas séries que parecem estar ultrapassando as preocupações mundanas para tocar em espaços mais profundos de quem a assiste. Vai fazer falta.
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