De maneira geral e sem pensar muito, podemos dizer que as comédias atuais na televisão estão divididas em dois tipos. O primeiro evoca os anos 90 as produções com claque e piadas bem marcadas, tipo The Big Bang Theory, Kevin Can Wait, How I Met Your Mother e por aí vai. A segunda são as comédias modernas, como 30 Rock, Veep, Atlanta, Unbreakable Kimmy Schmidt, que dominam as premiações (com razão) e o riso vira quase um atestado de inteligência.
De qualquer forma, são séries com públicos um tanto quanto divididos. É por isso que quando somos presenteados com produções como The Good Place, o sentimento é de união total. A série não é sisuda ao ponto de exigir um conhecimento político-econômico para rir e também não é imbecil e forçada que faça o público se sentir idiota ou com vergonha. Ela é simplesmente engraçada por apresentar um roteiro brilhante, novo e simples.
Produzida e exibida pela NBC (a única emissora de TV aberta que parece fazer boas escolhas atualmente) e agora também distribuída mundialmente pela Netflix, The Good Place conta a história de Eleanor (Kristen Bell, da ótima Veronica Mars), uma mulher que, ao morrer, é mandada ao Bom Lugar, onde as almas das pessoas com boas atitudes na vida vivem pela eternidade em um lugar perfeito.
A série consegue fazer um belíssimo retrato da nossa vida de forma irônica e esperta.
No Bom Lugar, todo mundo ganha uma casa baseada nos seus gostos pessoais, encontra uma pessoa que é sua alma gêmea e vive num mundo colorido, gentil e amável. Tudo seria ótimo se Eleanor não tivesse sido uma pessoa péssima na Terra e percebesse que, ao morrer, foi levada por engano para o Céu, quando deveria estar no Lugar Ruim. Agora, para conquistar seu lugar antes que alguém descubra seu segredo, ela conta com a ajuda de Chidi (Willian Jackson Harper), um ex-professor de Ética e sua suposta alma gêmea, que vai tentar treinar Eleanor a ser uma pessoa melhor.
O “arquiteto” do lugar, Michael (Ted Danson, de Damages) explica como o sistema determina quem foi uma pessoa ruim ou boa. Pedir a uma mulher para sorrir vale -53.83 pontos, assim como cometer um genocídio vale -433669.29. Já abraçar um amigo quando ele está triste vale +4.54 e acabar com a escravidão vale +814295.32. São piadas simples como esta que fazem o público sorrir e querer abraçar a TV, ao mesmo tempo em que também solta gargalhadas com sacadas geniais.
Criada por Michael Schur (que já passou por Saturday Night Live, Parks and Recreation, Brooklyn Nine-Nine, Master of None), a série é um frescor e lembra as ótimas Dead Like Me e Pushing Daisies, que também falavam sobre a morte de forma criativa. É impressionante como tudo funciona, até o que parece mais bobinho. Flertando com filosofia, ética e a vida após a morte, a série consegue fazer um belíssimo retrato da nossa vida de forma irônica e esperta.
Por muita vezes, o tal Bom Lugar parece insuportável, com tanta gente boazinha ou condescendente demais. É divertido também como a série mostra que não é preciso ser um Jesus Cristo para fazer coisas boas, basta que você não seja um babaca. O conceito de bom e mau é colocado à prova a todo instante e somos levados a pensar: será que somos pessoas boas ou apenas hipócritas?
Outro acerto é reunir um elenco perfeito com personagens muito bem construídos. Eleanor é egoísta e escrota, mas não de uma maneira irritante. Kristen Bell tem um timing invejável para comédia e nós rimos não apenas do roteiro inteligente, mas de suas caras e bocas, detalhes que complementam o texto refinado; Tahani (Jameela Jamil) é a pessoa mais perfeita e bonita da face da Terra (ou seja, irritante), mas vamos descobrindo que as motivações da personagem são super egoístas, o que garante momentos hilários; Jianyu (Manny Jacinto) é o mais próximo do estereótipo de outras séries de comédia, mas aos poucos ele vai ganhando o carinho do público e uma história interessante; já Chidi é o justo, tenso e indeciso que não consegue fazer nada errado e vai mostrando aos outros personagens como uma pessoa boa deveria agir; e o que dizer de Janet (D’Arcy Carden), uma espécie de Siri que reúne todas as informações do Universo, não sente emoção além de alegria e garante os momentos mais engraçados da série.
Todos ganham destaque e histórias interessantes que funcionam de forma orgânica justamente porque os roteiristas se esforçam em produzir piadas que todo mundo pensa ou faz. Nenhuma situação é americanizada demais a ponto de que as coisas não façam sentido para quem não é de lá e nada é muito problematizado. Ao mesmo tempo, a comédia tem uma história tão boa e reviravoltas tão doidas que a gente quer saber o que vai acontecer. E, sinceramente, o desfecho da primeira temporada é uma das coisas mais geniais dos últimos tempos.
O início da segunda temporada mostra que a série poderia soar repetitiva, mas o talento Michael Schur e de seus roteiristas surpreende novamente e faz não somente a série mudar de rumo completamente, como a deixa ainda mais engraçada. A única coisa que nos resta agora é sentar, relaxar e torcer para que The Good Place continue ótima por muitos anos.
Em tempo, a Netflix disponibiliza um episódio por semana logo após a exibição na rede NBC.