Você leva uma vida normal. Tendo família ou não, levanta todos os dias, estuda, trabalha, relaciona-se com outras pessoas. Enfim, leva cada dia sem se preocupar se ele será ou não o último – de certa maneira, faz parte da nossa essência resistir ao fato de que a morte é inevitável. Mas acontece que, inesperadamente, não apenas você, mas boa parte dos seres humanos veem pessoas próximas, amadas ou não, desaparecerem diante de seus olhos. Sim, inexplicavelmente, cerca de 2% da população mundial desapareceu sem deixar qualquer vestígio de seu paradeiro. Ficam para os remanescentes inúmeros questionamentos. Estão mortos? Por que eles e nós não? Como seguir a vida de forma normal? Isto tornará a acontecer? Estamos todos loucos e isso não passou de um pesadelo?
De forma resumida, esse é o argumento sob o qual se desenvolve a trama de The Leftovers, série sci-fi da HBO criada por Damon Lindelof e Tom Perrotta, sendo este último, também, o responsável pelo romance em que a série é baseada. Lindelof é uma das mentes brilhantes por trás de Lost, o seriado que marcou época ao acompanhar a vida dos sobreviventes de um acidente aéreo em uma misteriosa ilha no Oceano Pacífico.
Você pode até não gostar de Lost, mas é inegável que Lindelof, J.J. Abrams e Jeffrey Lieber mudaram o rumo da abordagem de ficção científica na televisão, fazendo com que retornássemos a enxergá-la com o respeito que merece. Os rumos tomados pelo show, bem, não diminuem sua importância, tampouco jogam qualquer espécie de sombra sobre o trabalho de Lindelof em The Leftovers. Na realidade, acabam por servir justamente como uma bagagem importante, para que os erros cometidos no passado não tornem a ser repetidos.
Suas duas temporadas (a série está renovada para uma terceira e derradeira temporada, a ser exibida ainda este ano) foram minuciosamente trabalhadas, e ganham maior destaque se imaginarmos que toda obra literária de Tom Perrotta foi esgotada ainda na primeira temporada. Sem medo de errar, The Leftovers é o melhor show que temos na televisão norte-americana atualmente. Parte de seu sucesso está em não focar o desenrolar da trama nos acontecimentos do dia 14 de outubro. Somos levados para três anos após, deixando o público sem o boom do acontecimento, das reportagens, das lágrimas, mas com a dor, o sofrimento e a solidão. E este é, provavelmente, um dos principais acertos da série.
Sem medo de errar, The Leftovers é o melhor show que temos na televisão norte-americana atualmente.
Vivemos não com uma, mas com várias lacunas sobre o que acontecia com aquelas pessoas, e isso proporciona que seus personagens sejam não apenas complexos, mas que possam ser desenvolvidos quase como se estivéssemos realmente nos inteirando dos acontecimentos e seguindo o roteiro estabelecido pelos criadores.
The Leftovers possui muitas referências filosóficas, mas também muitas outras de cunho religioso. É impossível dissociar – ainda que o Lindelof e Perrotta o façam volta e meia com maestria – o conceito do arrebatamento (interpretação de alguns livros bíblicos segundo o qual este seria o momento em que Jesus resgataria os salvos para a Nova Jerusalém, deixando na Terra apenas os seres que não o aceitaram como salvador).
A culpa também é elemento presente de forma constante. Seja no protagonista, o xerife Kevin Garvey (o irretocável Justin Theroux), abandonado pela esposa Laurie (Amy Brenneman, outra a brilhar na tela), deixado pelo filho Tom (Chris Zylka) e vivendo em constante conflito com a filha mais nova, Jill (Margaret Qualley); seja na pele de Nora Durst (Carrie Coon), a mulher que teve toda sua família levada no fatídico dia 14 de outubro; seja em Patti Levin (Ann Dowd), a líder dos Remanescentes Culpados, grupo cujo único objetivo é fazer com que as pessoas não esqueçam o que aconteceu; seja em Matt Jamison, o ex-reverendo que viu sua esposa Mary (Janel Moloney) entrar em permanente estado de choque; ou mesmo Meg Abbott (Liv Tyler, que demora – muito – a engrenar na série), que entra em crise pouco antes de seu casamento.
Inevitavelmente, seremos colocados diante de questionamentos essencialmente humanos, postos diante da difícil missão de nos colocar na pele das personagens retratadas na série, ou, simplesmente, procurando juntas as peças soltas na tela – veja bem, soltas mas não largadas ao acaso. E é bom dizer que as metáforas postas no roteiro não ficam exageradas. São símbolos facilmente associáveis à formação das sociedades, o que torna o desenrolar da trama totalmente crível.
Superando todas as expectativas e derrubando o preconceito com o gênero, The Leftovers é a melhor série da atualidade, com um elenco entrosado, proporcionando atuações inesquecíveis (até da mediana Liv Tyler), mostrando como a ficção científica é muito mais do que o senso comum crê. Sinceramente, imperdível.