Se atualmente não vemos tantas comédias com risadas ao fundo e cenário fixo (The Big Bang Theory, Friends), as comédias estilo single camera (Modern Family) tomaram conta da televisão, algumas com roteiros realmente espertos, outras nem tanto. Quando não há o artifício de fazer piadas a cada cinco segundos sem o auxílio das risadas para informar a hora exata de rir, os roteiristas precisam, cada vez mais, investir em uma linguagem rápida e esperta. The Real O’Neals, nova comédia do canal ABC, flerta com os dois estilos e se utiliza de uma premissa bastante divertida que, se souberem conduzir, pode dar bastante certo.
A série conta a história dos O’Neals, uma família extremamente conservadora. Católicos ao máximo (ao ponto de ter uma imagem da Virgem Maria no banheiro), os O’Neals fazem de tudo para serem considerados perfeitos aos olhos da comunidade. Mas tudo vira de cabeça para baixo quando o filho mais novo Kenny (Noah Galvin) sai do armário e revela para a mãe que é gay. A partir daí, cada membro da família começa a revelar seus segredos mais escondidos. O filho mais velho Jimmy (Matt Shively) tem anorexia, Shannon (Bebe Wood) tem uma forte tendência a ser uma ladra para ajudar os mais necessitados e o casal Eileen (Martha Plimpton, ótima) e Pat (Jay R. Ferguson) estão se divorciando.
A série é criada por David Windsor e Casey Johnson, ambos de Don’t Trust B – in Apartment 23 e What I Like ABout You, mas todo o conceito vem do jornalista e ativista LGBT Dan Savage. O nome talvez não seja muito conhecido no Brasil, mas Savage foi responsável pelo projeto It Gets Better, uma campanha voltada a ajudar o público jovem que, por não terem aceitação de familiares ou amigos, tentavam o suicídio. Assim, a história se baseia levemente nas próprias experiências de Savage, como entrar em um estabelecimento voltado ao público gay pela primeira vez ou olhar revistas com anúncios de homens bonitos nas páginas.
Produzir e exibir uma série que não somente tira sarro com a religião mais popular do mundo, ainda que de forma bem ingênua, é uma transgressão que exige coragem.
The Real O’Neals jamais sai do arroz com feijão das séries sobre famílias – como a própria Modern Family, The Middle ou a já cancelada Raising Hope -, mas isso parece ser mais uma exigência do canal do que dos roteiristas, já que é possível notar uma acidez no texto que provoca os verdadeiros conservadores que estão fora da televisão. Esses momentos, claro, são o que há de melhor na série. Enquanto a mãe, católica fervorosa, diz ao filho que ele está condenado ao inferno, a mesma mulher percebe o caos que é sua vida, cheia de pecado e transgressões que fazem dela imperfeita – e o julgamento da micro sociedade onde ela vive começa a encher a paciência. Quanto mais a família tenta parecer perfeita, menos consegue.
Há, claro, alguns problemas. Em diversos momentos, o “mundo gay” parece um pouco estereotipado. Kenny entende de moda, ouve Lady Gaga e é fã de Reese Witherspoon. Não há tempo para aprofundar a questão da descoberta do garoto, o que deixa tudo um pouco artificial demais. Algumas situações também soam bastante forçadas ou repetitivas, o que pode cansar a audiência (que vem caindo a cada semana). Mas mesmo que a série não seja um sopro de genialidade, o que faz The Real O’Neals valer uns 20 minutos por semana é algo que diversas comédias, embora aclamadas, não conseguem: ela faz rir. Há momentos bastante inspirados, como Kenny tentando descobrir o que é bear ou daddy, ou tentando acessar sites pornôs e enchendo o computador da mãe com vírus e pop ups intermináveis.
Por ser transmitido pela ABC (já falaremos mais sobre isso), a série é inofensiva, mas ensaia uma crítica interessante à intolerância religiosa. Assim, temos uma sequência engraçadíssima sobre a avó de Kenny chegando à casa dos O’Neals, uma versão feminina de Jair Bolsonaro, que consegue atingir a todos da família com suas crenças preconceituosas e más. De fato, a série pinta a figura da mulher de forma caricata, mas arranca risadas ao simplesmente mostrar o pensamento conservador ao mesmo tempo em que Kenny já não suporta mentir e confronta sua avó comprando um bolo com uma cobertura escrita “Eu sou gay”.
The Real O’Neals levantou o ódio da família bela, recatada e tradicional norte-americana. A Associação da Família Americana e o Conselho de Pesquisa da Família – organizações relativamente fortes nos Estados Unidos – tentaram um boicote, pedindo ao canal que colocasse a produção em um horário bastante ingrato. Tudo isso porque a série mostra os católicos como pessoas fanáticas, levemente burras e retrógradas. Guardadas as devidas proporções, é quase como o que acontece no Brasil com as esquetes religiosas do Porta dos Fundos. Tradicionalmente, o canal ABC é responsável por dramas e comédias que exaltam valores familiares, sem se aprofundar em questões mais polêmicas. Produzir e exibir uma série que não somente tira sarro com a religião mais popular do mundo, ainda que de forma bem ingênua, é uma transgressão que exige coragem, especialmente quando se desafia a audiência que a série tanto precisa. Mesmo assim, há um certo conservadorismo em como todos da família se amam independentemente das dificuldades e desafios, argumento que, provavelmente, foi uma exigência do canal.
E mesmo quando o texto soa forçado, quem arranca risadas toda vez que aparece é a matriarca Eileen. A atriz Martha Plimpton já havia mostrado todo os eu talento para ser uma mãe desequilibrada em Raising Hope, mas aqui ela aparece ainda mais inspirada. Tentando as coisas mais malucas para que seu filho se torne hétero, Eileen faz rir com facilidade e consegue ter química com todo o elenco. Juntos, a família, ainda que caricata, se torna agradável diante do público. Já Noah Galvin, o Kenny, entrega uma naturalidade ao seu personagem bastante engraçado, ainda que com diversos gestos teatrais que podem irritar ao longo do tempo.
The Real O’Neals não é nenhuma comédia que ficará muito tempo no ar, mas é uma produção simpática que, no meio de tanta coisa ruim na televisão aberta norte-americana, consegue provocar algumas boas risadas durante seu trajeto. Mesmo que pareça ter um argumento limitado – afinal, a família nem tem tantos problemas assim – a série consegue reunir um discurso que, no final das contas, se torna importante. Mesmo os Estados Unidos tendo diversas produções que respeitam e colocam o público LGBT como protagonistas, boa parte dessas séries se passa na televisão fechada. The Real O’Neals incomoda ao colocar um personagem adolescente gay como protagonista, ainda mais em uma família tradicional. Dessa forma, mesmo que seja cancelada por baixa audiência ou pressão da opinião pública, The Real O’Neals mostra uma evolução para que a aceitação do público americano mainstream aconteça de forma gradativa, mesmo que pareça provocar a ira dos religiosos.