É chover no molhado apontar Sopranos como um marco divisório nas séries televisivas. Embora muita coisa boa tenha sido feita antes da história dos mafiosos de Nova Jersey, o fato é que há um antes e depois das desventuras de Tony Soprano e seus comparsas. Mas tudo isso só pode existir pela confiança depositada pela HBO na genialidade do seu criador, o showrunner David Chase.
Disponível na Max, a série documental em dois episódios Um dos Nossos: David Chase e a Família Soprano é muito bem-sucedida em esclarecer por que mesmo quase 20 anos depois do fim, a grande criação de Chase segue absolutamente fascinante. Ao longo dos 8 anos em que a atração esteve ao ar, um séquito de fãs pode se deleitar com um roteiro impecável que trouxe tridimensionalidade aos dramas de um vilão da máfia acometido por neuroses que pareciam não ter fim.
Esse encantamento só foi possível por conta da escolha irretocável do elenco, com destaque absoluto a James Gandolfini, o ator até então desconhecido que consolidou um personagem que segue emplacado na cultura popular. Nas próprias palavras de David Chase (proferidas na ocasião do velório de Gandolfini, morto precocemente em 2013), o intérprete levou a Tony uma luz rara e a capacidade de fazer a plateia ver o menino por trás de um bad guy. Não era pouca coisa.
Os dois episódios de Um dos Nossos são um verdadeiro presente aos fãs, uma vez que entregam novas nuances em relação à produção da série e, mais do que isso, nos fazem entender o quanto o controle criativo de David Chase foi importante. Afinal, o universo consolidado por seu projeto partia das muitas referências familiares (como o fato de ter composto Livia Soprano, a odiosa mãe de Tony, a partir das características de sua própria mãe), mas também de suas origens italianas cultivadas em Nova Jersey.
A máfia no divã
Dirigido pelo respeitado documentarista Alex Gibney, Um dos Nossos: David Chase e a Família Soprano toma como cenário principal a réplica do consultório onde Tony Soprano tinha suas sessões de terapia com a doutora Jeniffer Melfi (papel de Lorraine Bracco, que era então a única estrela do elenco). Faz sentido: é a partir dali que o soturno Chase relembra o seu passado, marcado por alguns fracassos, mas também pela certa convicção de que a narrativa televisiva podia ser muito mais do que era.
Era nas sessões de terapia com a doutora Melfi que Tony Soprano se deparava (quase sempre de forma conturbada) com os seus demônios e seus paradoxos.
Por mais, entenda-se aqui por complexa, profunda. Até por isso, era nas sessões de terapia com a doutora Melfi que Tony se deparava (quase sempre de forma conturbada) com os seus demônios e seus paradoxos. Arrimo da família, Tony ama e valoriza a esposa e os filhos, bem como a herança italiana deixada por seus parentes imigrantes. Ainda assim, é mulherengo, extremamente violento e está sempre às turras com os dilemas éticos que precisa enfrentar para manter o seu domínio sobre outros capos.
A riqueza de Um dos Nossos é que a série vai nos proporcionando vislumbres dos custos de tudo isso. Vale lembrar que, à época do lançamento de Sopranos, a HBO não era a referência de qualidade que é hoje, mas um lugar onde os artistas e as séries iam para morrer – conforme descreve em certo momento Michael Imperioli, intérprete do primo Christopher Moltisanti. Depois de tentar vender o projeto em 4 emissoras, David Chase finalmente emplaca sua ideia na HBO, que aposta alto sem a perspectiva de colher resultados.
Mas dá certo, e o resto é história. O que o documentário nos traz é uma perspectiva pessoal de tudo que aconteceu – seja sobre como a série afetou o próprio Chase, mas também os atores. Um dos aspectos mais curiosos é ver que os artistas tinham medo de ler os roteiros e descobrir que iriam morrer naquele episódio. Conforme relatam as atrizes Eddie Falco (a insuperável Carmela Soprano) e Drea Di Matteo (que vivia Adriana), eram as vidas e os sustentos daquelas pessoas que eram afetadas por suas mortes. Mas não havia muito o que fazer – afinal, essa era uma verdadeira série de máfia, e a violência era intrínseca.
Contudo, o aspecto mais perturbador de Um dos Nossos: David Chase e a Família Soprano é compreender o preço pago por Gandolfini ao emprestar seu corpo e sua alma a Tony. Descrito como um sujeito pacato e doce, o ator acabou aos poucos mergulhando no universo sombrio do personagem central à medida em que as temporadas avançavam. A escolha das cenas vai deixando claro que era impossível passar impune ao mergulho na obscuridade presente em Tony. Não à toa, James Gandolfini enfrentou muitos momentos conturbados em que ele mesmo era violento, além de ter sido alvo de uma intervenção pelo elenco e familiares (subentende-se, talvez, um problema com álcool).
A vida vale mais que a arte? Embora não seja exatamente enfrentada, essa é uma questão que pipoca à mente ao fim da fruição dos dois episódios da série da HBO. O que fica claro, por fim, é que mesmo tantos anos depois do encerramento, Sopranos permanece insuperável.
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