Exibido anualmente durante dois dias ininterruptos, o programa Teleton – um grande show de variedades que visa angariar dinheiro para a AACD, tradicional instituição que atende pessoas com deficiências diversas – é a principal (se não única) ação social realizada pela emissora de Silvio Santos. Nestes dias, o SBT paralisa sua programação e utiliza todas as suas estrelas, bem como artistas de outras emissoras (gente do cacife de Ivete Sangalo e Michel Teló, contratados da Globo para o The Voice), para mobilizar uma campanha importantíssima.
No ano que em completa duas décadas no ar, o programa se viu arrastado para dentro da questão que assombra os ânimos brasileiros: o medo coletivo de boa parte da população quanto ao futuro governo de Jair Bolsonaro, cujas pautas conservadoras prometem uma série de retrocessos na vida social dos brasileiros.
O SBT já havia angariado recentemente a antipatia de uma parcela da população ao soltar uma série de vinhetas que recuperam slogans da época da ditadura diante de imagens de pontos turísticos do país. Algumas vinhetas continuam rodando, mas a que utilizava a frase “Brasil, ame-o ou deixe-o”, que era uma espécie de hino em prol à ditadura (convidando os contrários ao regime que se retirassem), foi tirada do ar. Há ainda rumores sobre a possibilidade de que Sílvio Santos ressuscite o “A semana do presidente”, um quadro exibido por mais de vinte anos pelo SBT e que visava nada mais que puxar o saco dos políticos que estavam no poder.
No ano que em completa duas décadas no ar, o programa se viu arrastado para a questão que assombra os ânimos brasileiros: o medo coletivo de boa parte da população quanto ao futuro governo de Jair Bolsonaro.
Logo após isso, nas vésperas do Teleton, o apresentador do SBT Celso Portiolli fez alguns posts em suas redes sociais nos quais ironizava as críticas a essas vinhetas, chegando a escrever que a “Venezuela é logo ali” . Em seguida, foi recomendado ao apresentador que apagasse as postagens, pois temia-se uma repercussão negativa nas doações ao Teleton.
A visão do SBT como uma emissora subserviente do poder (independente de qual seja ele) já estava, portanto, circulando quando, no último sábado, durante a exibição do Teleton (que é exibido ao vivo), o apresentador Raul Gil, em tom histriônico, levantou uma breve, mas impactante, louvação ao presidente eleito. No palco com a atriz e apresentadora Maísa, Raul Gil disse “que os ladrões do povo estão sumindo e vão sumir. O homem chegou aí. Ele vai doar também. Alô, Bolsonaro, não esquece que Deus te deu essa divina luz de você ganhar a eleição, agora você passa um pouco dessa luz para a AACD”. Conforme celebrado por muitos perfis nas redes sociais e mesmo pelos veículos jornalísticos, Raul Gil parece ter sido cortado prontamente por Maísa, que o interrompe perguntando qual o valor do cheque. Ainda que esse suposto “corte” não seja evidente, Maísa foi elevada nas redes sociais a representante de todos aqueles que se opõem a esse governo.
Por fim, o ápice do tom político do Teleton: Silvio Santos recebeu uma ligação telefônica ao vivo de Bolsonaro. Na ocasião, Sílvio cumprimentou o político, destacou a gentileza da ligação (informou ser a primeira vez que recebeu um telefonema de um presidente – o que é uma imprecisão, já que Sílvio manteve uma relação amistosa ou mesmo interesseira com todos os presidentes, que inclusive estiveram em seus programas), elogiou a nomeação de Sergio Moro, e diz que “pede a Deus” para que o Brasil tenha oito anos num “bom caminho” com o governo de Bolsonaro. “Eu só quero que o senhor tenha muita felicidade no seu governo, porque a sua felicidade será a nossa felicidade em um Brasil cada vez melhor”, concluiu.
Frente a todas essas polêmicas, o Teleton acabou se envolvendo em uma agenda política que nada atrela à causa das pessoas com deficiência – e talvez seja essa uma das razões que fez com que o programa enfrentasse uma imensa dificuldade para atingir a meta de 30 milhões de reais. Nas redes, inclusive, insinuou-se um boicote ao programa, em virtude das diversas posturas assumidas pelo SBT na última semana – que são mais veladas, é bom pontuar, que a posição da Record, que se colocou como uma espécie de emissora oficial de Bolsonaro.
Vale lembrar que a postura “paparicadora” de Silvio Santos é uma constante desde a fundação da emissora, independente de quem esteja no poder. Conforme pontuou Maurício Stycer no livro Topa tudo por dinheiro – as muitas faces do empresário Silvio Santos, o apresentador jamais escondeu isso e já se definiu como um “office-boy de luxo do governo”. Revela, assim, que não tem intenções em criticar a quem quer que esteja governando – e talvez seja uma das razões pelas quais o SBT, historicamente, investiu tão pouco no jornalismo, que é, por essência, oposição.
Tudo isso fez com que o Teleton se enredasse em uma espécie de véu conservador na sua abordagem – como se fosse um programa que representasse os valores da chamada “família brasileira tradicional” (obviamente, a heteronormativa, nuclear, formada por pai e mãe, etc.), e também porque falou da vontade de Deus o tempo todo, palavra também sequestrada pela pauta conservadora (como se os chamados indivíduos de direita tivessem o monopólio para falar de Deus). O boicote ao Teleton se tornou inversamente proporcional a um boicote a Amor & Sexo, cujas pautas e discursos têm sido lidos por parte da população como um ataque ao governo Bolsonaro, ainda que a temporada tenha sido gravada inteira antes das eleições.
É uma pena, portanto, que a causa nobre do Teleton tenha se convertido a isso. Mas esta é uma sensação que se fortalece justamente pelo formato engessado do programa, conforme apontou o jornalista Ricardo Feltrin: a abordagem é datada, com trilhas sonoras sensacionalistas (no sentido de buscam causar emoções a todo custo) e, mais do que isso, uma visão idealizada (e por isso preconceituosa) da pessoa com deficiência como um “super-herói”, como alguém que nos lembra o tempo todo de que não temos problemas (o que aprisiona o deficiente num redutor estigma da vitimização).
O que se viu, entre os quadros musicais, foram histórias emocionantes de pessoas fascinantes que lidaram e lidam com dificuldades imensas, e cuja existência, por si só, já é capaz de comover a quem assiste, sem necessidade de discursos forçados. Em prol da nobreza da causa, que é importantíssima, seria urgente que o SBT repensasse as formas pelas quais deve contar as histórias dessas pessoas tão interessantes.