Eventualmente, pequenos episódios televisivos rompem o ciclo da normalidade e explodem para uma discussão que deve (ou deveria) interessar a todos. Tal como aquele menino do conto A roupa nova do imperador, alguém aparece para desnudar algo que não está certo. Um destes acontecimentos ocorreu na semana passada, no programa É de Casa, da Globo.
Numa das intermináveis cenas que simulam uma visita “em casa”, Silene, uma doceira da Cidade de Deus, havia sido convidada pela apresentadora Thalita Morete para levar a sua maravilhosa cocada.
Em certo momento, Thalita se levanta e pede que Silene sirva os convidados, dizendo: “vai servir todo mundo, Silene! Todo mundo está querendo sua cocada”. O menino que evidenciou que o imperador estava sem roupa, neste caso, foi o apresentador Manoel Soares, o único negro do elenco do É de Casa.
Ele pediu que Silene se sentasse e disse: “vamos fazer o seguinte? Eu vou ser o seu garçom e você vai me orientar para quem eu vou servir, porque você não vai servir ninguém”.
O caso foi apontado por muitas pessoas como um exemplo de racismo estrutural, o que está enraizado nas estruturas da sociedade, de forma praticamente invisível.
Quando assistimos a uma novela e não nos damos conta de que há pouquíssimos atores negros, ou que eles estão em papéis de subalternidade, estamos diante do racismo estrutural. Da mesma forma, quando uma apresentadora branca pede a uma convidada negra de um programa para que sirva os demais apresentadores, o racismo presente no tecido social também se evidencia.
Algumas pessoas nas redes sociais disseram que um bom exemplo de enxergar o racismo na situação do É de casa é imaginar se Thalita Morete (ou outro apresentador, pouco importa) pediria com tanta naturalidade que uma chef famosa, como Helena Rizzo e Paola Carosella, servissem os apresentadores. E a resposta mais honesta é que ela provavelmente não o faria.
Enquanto o sofá da Hebe estava localizado na solene sala de jantar, o É de Casa pretende apresentar uma casa dos sonhos, em que, teoricamente, todo mundo gostaria de morar.
No sábado seguinte, Thalita Morete pediu desculpas publicamente no programa e, como disse o colunista Tony Goes, teve a decência de não dizer que foi mal interpretada.
Ainda assim, em nenhum momento se referiu à palavra racismo, o que não deixa de ser um sintoma importante de como esta discussão está ainda muito aquém do que poderia estar. Ou seja: nós, pessoas brancas, ainda nos ofendemos mais em sermos chamados de racistas do que sendo racistas.
Mas penso que seria bastante injusto crucificar Thalita Morete sem pensar na questão mais profunda aqui, que é a própria existência de um programa como É de Casa na grade da TV Globo.
‘É de Casa’ – casa de quem?
No ar desde 2015, o programa É de Casa parte de um gênero relativamente comum na história da TV brasileira, que são as atrações que simulam o conforto de uma casa para desenvolver conversas (ou entrevistas) mais intimistas. Era, de alguma forma, a premissa do famoso sofá da apresentadora Hebe Camargo.
Enquanto o sofá da Hebe estava localizado na solene sala de jantar, o É de Casa pretende apresentar uma casa dos sonhos, em que, teoricamente, todo mundo gostaria de morar. Lá, tem um quintal gigantesco, milhões de objetos de artesanato descolados produzidos por comunidades pobres (e comprados em lojas como Tok Stok), um marido bonitão que faz comidas deliciosas.
Há também vídeos de bichinhos fofos que fazem esquecer do que está lá fora. É quase como uma casa que existe em um mundo paralelo – pelo menos em relação ao mundo habitado pela maior parte da população brasileira.
Estamos diante da fachada de uma casa cinematográfica, tal como deve ser o lar dos mais ricos, enquanto o trabalho duro permanece invisível nas coxias.
Mas o grande problema talvez seja em quem habita essa casa. Os apresentadores, pelo que se mostram e pelo que conhecemos deles pelo mundo das celebridades, são sujeitos de classe alta, sempre impecáveis, vestidos com roupas caras. Claramente, não cabe a eles cuidar para que essa casa permaneça perfeita.
Ou seja, estamos diante da fachada de uma casa cinematográfica, tal como deve ser o lar dos mais ricos, enquanto o trabalho duro permanece invisível nas coxias. Quando Thalita Morete pede que uma convidada negra sirva os apresentadores (todos brancos, com exceção de Manoel Soares), é uma cena completamente condizente com a proposta do É de Casa.
E o pior: Silene, a doceira, não é uma exceção à narrativa tecida pelo É de Casa. Uma observação mais extensa do programa notará que, seguidamente, pessoas socialmente desfavorecidas são convidadas para esta casa e são tratadas de uma mesma forma condescendente, quase como se servissem para congratular o programa e à Globo por sua proposta de inclusão. Funcionam como token, para evidenciar o papel louvável destes salvadores brancos.
Estou curiosa para saber o que irá mudar com a entrada de Maria Beltrão no programa, embora creia que o problema do É de Casa seja, na verdade, toda a sua proposta. Por isso, vale a pena se perguntar: quem, de fato, se sente em casa no É de Casa?
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