No começo de abril de 2015, o canal FOX estreou a última temporada de Glee no Brasil. Nos EUA, a série acabou dia 20 de março do mesmo ano, uma sexta-feira, péssimo para qualquer produção. Isso porque sexta é tradicionalmente o dia em que os americanos menos veem televisão. Séries com baixa audiência ou que não geram lucros significativos são empurradas para as sextas-feiras. Mesmo com a exibição dos dois últimos episódios na sequência, a FOX americana ficou em quinto lugar e amargou 2 milhões de telespectadores, muito diferente de um Glee que estreou em 2009, em uma terça-feira, com quase 10 milhões de americanos em frente à TV. Mas por que depois de seis anos, milhares de produtos vendidos e um sucesso estrondoso, o público abandonou a comédia-musical?
Para entender, precisamos analisar rapidamente a carreira de Ryan Murphy, criador da série. Por fazer produtos que chamam atenção e por seu texto afiado, ele é um dos nomes mais famosos da indústria. Em 1999, criou Popular (veja a abertura do seriado aqui), série adolescente com a premissa já batida de jovens no ensino médio e seus dramas. Cancelada após duas temporadas, hoje é considerada a precursora de Glee por já trazer todo o deboche e a ironia característicos de seus textos.
Depois disso, criou a bizarra Nip/Tuck, quando ganhou seu primeiro Emmy. A série, que criticava o mundo das cirurgias plásticas, foi excelente até a terceira temporada (foram seis), mas depois desandou de uma maneira absurda. Murphy também é o responsável pela antologia American Horror Story. Indicada a diversos prêmios e sucesso de público, embora cada temporada tenha uma história diferente, já começa a apresentar cansaço e queda na audiência, entregando a maior característica do autor: falta de planejamento para com suas criações.
Mas voltemos a Glee, seu maior êxito até agora. Para quem não conhece, Glee conta a história dos alunos do colégio McKingley. Um professor (Matthew Morrison) assume a coordenação de um coral largado às traças, chamado New Directions. No grupo, ele começa a treinar alunos que são considerados losers pelos mais populares, não sem antes provocar a fúria da treinadora Sue Sylvester (a ótima Jane Lynch), que sente inveja do clube por ele tirar a atenção de suas líderes de torcida.
Em 2009, a série era um fenômeno não apenas pelo monstruoso sucesso da franquia High School Musical (Disney) e nem só por ter chamado a atenção de adolescentes, mas por ter ultrapassado os limites da televisão, se tornando um dos produtos mais rentáveis da FOX. Com uma campanha maciça de marketing, a série vendia CDs, DVDs e as músicas figuravam facilmente na lista de mais baixadas do iTunes. O mundo todo falava de Glee.
Mesmo com diversos erros (e foram muitos mesmo) a edição esperta e o texto inteligente de Murphy tornaram Glee relevante, se não para a televisão, para seu público-alvo: adolescentes que se sentiam inferiorizados.
Mas da mesma forma em que o sucesso chegou, as críticas negativas também pareciam determinadas a anular qualquer acerto. Falar mal de Glee virou quase uma obrigação para o, digamos, público de seriado “de verdade”. Porém, ao prestar um pouquinho de atenção nas entrelinhas, percebe-se que é injusto classificá-la apenas como uma historinha sobre jovens cantando. Mesmo com diversos erros (e foram muitos mesmo) a edição esperta e o texto inteligente de Murphy tornaram Glee relevante, se não para a televisão, para seu público-alvo: adolescentes que se sentiam inferiorizados.
Embora inúmeros críticos afirmem que o sucesso era injustificado, Murphy conseguiu introduzir temas interessantes que, de uma forma ou outra, tiveram impacto em quem se identificava com as histórias. A série discutiu gordofobia, racismo, bullying e, especialmente, o direito dos gays, algo que já estava em seus planos desde Popular. Panfletário? Talvez, mas que não deixa de ser importante em qualquer produção de massa, principalmente em uma série que mantinha uma média de audiência de 7 milhões de pessoas por episódio.
Como comédia, funcionava bem, ainda que muitos discordem dessa afirmação. Sue era uma vilã adorável, que em todo episódio trazia piadas até um pouco pesadas, mas que mostravam como os roteiristas sabiam que a série era mais uma paródia de si mesma. Assim como Santana (Naya Rivera) era a garota maldosa, porém sensata, que evidenciava alguma falha na construção narrativa. Quando os personagens começavam a cantar sem motivo algum e com um cenário rico, Glee se mostrava mais preocupada em divertir o público do que criar uma situação verossímil. O que mais incomodava era a impressão de que somente alguns roteiros eram elaborados com cuidado, deixando a maior parte dos arcos dramáticos serem definidos pelas cancões e não pela elaboração de uma história mais complexa. A escolha das músicas definiam o que os personagens sentiriam em cada semana.
E depois de três boas temporadas, as coisas começaram a complicar, não somente pelos roteiros sem nexo, mas por algo que acontece em toda série adolescente ambientada em um colégio: os personagens precisam se formar, obrigando os roteiristas a tomar outros rumos. Embora a ideia seja a do público crescer junto com o roteiro, nem sempre isso acontece. Ainda que Murphy tenha tentado manter o núcleo do colégio com novos personagens e tenha levado o núcleo antigo à Nova York, a audiência rejeitou e a produção começou a entrar numa espiral de erros. Aquela característica de Murphy, citada anteriormente, começa a aparecer.
Ao criar ideias novas e empolgantes, ele erra a mão depois de poucos anos e não sabe como concluir. Glee começa a ser detestada não só pelos críticos, mas por boa parte de seu público. O episódio Shooting Stars, na quarta temporada, foi especialmente criticado pela imprensa estrangeira. O enredo mostra um aluno levando uma arma para a escola, a qual é acidentalmente disparada, causando pânico geral. Embora o tema seja de extrema relevância para a cultura americana, poucos meses antes da exibição do episódio houve um tiroteio na escola Sandy Hook, em Connecticut. Os familiares das vítimas se sentiram ofendidos com a emissora e os críticos entenderam que toda a produção de Glee quis lucrar em cima da tragédia. E as coisas pioraram ainda mais.
No final da quarta temporada, Cory Monteith, o Finn, assumiu seu vício em drogas e entrou em uma clínica de reabilitação. Assim, Murphy foi obrigado a afastar o personagem da historia e alterar o final do quarto ano. Porém, o plano para o próximo ano era trazer Finn comandando o coral, enquanto a protagonista Rachel (Lea Michele) faria sucesso em NY estrelando sua peça na Broadway. Murphy tinha tempo para arrumar tudo, já que a FOX havia garantido a renovação da série para mais dois anos. Só que semanas antes das gravações da nova temporada, Monteih faleceu vítima de overdose.
Ainda que a estreia do quinto ano tenha sido adiada por alguns meses, os problemas nos bastidores só aumentavam. Boatos de que as atrizes Naya Rivera e Lea Michele estavam se desentendendo começaram a aparecer, o que refletiu no roteiro. Ao invés de adaptarem o texto para a realidade do que estava acontecendo, os roteiristas resolveram criar soluções fáceis, inserindo plots sem sentido ou até mesmo cruéis. O terceiro episódio resolveu “homenagear” Finn, mas acabou soando, novamente, como um capítulo para monetizar em cima de outra tragédia, obrigando Lea Michele, namorada do ator também fora da tela, a chorar a morte do ator no final do episódio. Depois disso, enquanto o núcleo de NY podia resolver seus arcos dramáticos sem a presença de Finn na história, o colégio precisava se reinventar. Só que Murphy e sua turma regrediram, escrevendo vários episódios temáticos com músicas de Katy Perry, Miley Cyrus ou qualquer outro cantor que estivesse tocando nas rádios. O roteiro, que já era fraco, agora não fazia rir, tinha músicas aleatórias e a série não evoluía. O público desistiu de vez.
No sexto e último ano de Glee, não havia muito tempo a perder. Então, quase todos os novos personagens que apareceram nas duas últimas temporadas foram sabiamente excluídos e boa parte do elenco voltou ao colégio para ajudar a nova formação do coral, agora liderada por Rachel e Kurt (Chris Colfer). Os números musicais diminuíram para dar atenção às histórias e os roteiristas resolveram fazer algo que deu certo nos primeiros anos: não se levar tanto a sério.
Nos 13 episódios que encerram a série, Glee apresenta um texto cheio de metalinguagem, com Sue dizendo que destruirá o coral em 13 semanas ou mais, caso o canal permita. Os próprios personagens brincam com os inúmeros furos no roteiro durante toda a série e abrem os braços, mais ainda, para o lúdico. Embora pareça tosco, era isso que fazia a série ser divertida.
Glee sempre tentou ser um entretenimento para aqueles que a apreciavam e conseguiu fazer isso por muito tempo. É bem verdade que eles construíam histórias para largá-las no episódio seguinte, além de personagens que não tinham personalidade definida, mas não há como negar que foi uma série querida para a geração que acompanhou Rachel, Finn, Kurt, Mercedes, Blaine e tantos outros que passaram por ela. Se qualquer obra tem como objetivo atingir seu público, Glee fez isso de maneira muito eficiente.
Os roteiros continham um texto nervoso, com a clara intenção de provocar, mas isso só era perceptível aos mais atentos. Escondido numa edição rápida, Murphy colocou o dedo na ferida como poucos. A série, acima de tudo, conversava com o público adolescente que se sentia marginalizado. Assim, quando Glee falou sobre o motivo da homofobia do valentão do colégio se dar pelo fato dele ser homossexual, os adolescentes dialogaram sobre isso. Quando a neta confessou para a avó que era lésbica e ouviu um doloroso “suma da minha casa”, não há dúvidas de que alguém se identificou. Ou quando o adolescente que gostava de se vestir de mulher apareceu no colégio e chorou ao ser discriminado, certamente abriu-se uma discussão entre os jovens para falar sobre transfobia.
Glee está bem longe de ser uma ótima série. Em se tratando de produções voltadas ao público jovem, muitas outras conseguiram abordar de forma mais aprofundada esses assuntos, mas uma obra não elimina a outra. Glee conseguiu, à sua maneira, criar identificação com uma parcela do público que se sentiu agradecido ao se ver representado na televisão. Somente isso já basta para não deslegitimar a trajetória da série.
No Brasil, a última temporada de Glee é exibida toda quarta-feira, no canal FOX, às 19h. O episódio final deve ir ao ar em junho.