Na última quinta-feira, quem assistia ao Meio Dia Paraná, telejornal da RPC, assistiu a uma “interferência” em uma entrada ao vivo feita por um repórter. Ele entrevistava pessoas na fila para a compra de ingressos para o show do Foo Fighters, que ocorre em setembro em Curitiba.
Ele se aproxima de uma moça na fila, que está de camiseta do Nirvana e um boné esverdeado. Pergunta sobre uma história que ela teria sobre o Foo Fighters. De maneira eloquente, sem titubear, ela diz, textualmente: “Eu vim para Curitiba em 2018, para um show do Foo Fighters. Conheci a cidade e resolvi mudar para cá. E hoje é um dia muito importante para os fãs de Foo Fighters, porque temos ingressos na mão e talvez até o Bolsonaro preso”.
O repórter fica constrangido. Ao retornar para o estúdio, o apresentador lê um texto que diz: “em relação à declaração de uma fã da banda Foo Fighters durante a entrada ao vivo, é importante destacar aqui que o jornalismo da RPC defende sempre o direito democrático à manifestação. Mas a gente lembra também que há um espaço próprio para esse tipo de manifestação, e que esse espaço não é em meio a uma entrada ao vivo do jornal. Pedimos desculpa e lamentamos esta situação”.
Mais tarde, a RPC editou a reportagem no site da Globoplay, retirando a interferência da entrevistada e deixando no fim o texto lido pelo apresentador. Contudo, pouco importa, pois o vídeo da moça já circulava a rodo pelas redes sociais – sobretudo pelos perfis das pessoas que se regozijavam com o comentário político.
Penso que há boas questões neste episódio. Muitos compararam a situação aos vários casos de pessoas que atrapalharam ou boicotaram o trabalho dos jornalistas televisivos nos últimos anos – em especial, os apoiadores do próprio Bolsonaro, que sempre se manifestou de forma agressiva quanto à Globo (emissora de qual a RPC é afiliada).
Obviamente, há uma clara diferença aqui: a fã do Foo Fighters não atrapalhava o trabalho jornalístico, mas sim atendia a um “convite” que foi feito a ela para participar do telejornal, respondendo a uma questão. O que ela faz, então, é “contrabandear” uma mensagem que era indesejada ao veículo naquele momento (e possivelmente em todos os outros) na emissora. Insere, de maneira estratégica, algo que, pelas “regras do jogo” (estabelecidos pela própria RPC, sem negociar com o espectador) não cabia ali.
A entrevistada, tal como um jogador de futebol, “dribla” as próprias intenções da emissora e joga na tela uma mensagem imprevista, dizendo algo que escapa do seu controle.
Empresto o conceito de “contrabando da mídia” de uma ideia que estava em desenvolvimento pelo jornalista e pesquisador Victor Folquening em seu doutorado em Ciências da Comunicação na UNISINOS, mas que nunca pode ser finalizada, com seu falecimento precoce, no ano de 2011. Contudo, encontrei uma explicação sobre o que ele propunha aqui: “O ‘contrabando’ é uma espécie de obiter dicta: ele ‘entrega o jogo’ e nos permite aceitar, talvez no único momento possível, a ‘intenção’ em disputa na circulação. Se não podemos falar com segurança de ‘intenção’ já que os discursos não pertencem ao controle do inconsciente, podemos pelo menos identificar as ações propositais que os discursos deflagradores insinuam.”
Em outras palavras, a entrevistada, tal como um jogador de futebol, “dribla” as próprias intenções da emissora e joga na tela uma mensagem imprevista, dizendo algo que escapa do seu controle. Ao fim dessa emissão, o seu representante (o apresentador) arremata: manifestações são bem-vindas, desde que estejam no local certo. E uma pergunta legítima seria: qual é o espaço que a RPC dedica ao debate com o seu público?
A falácia da interação
Recentemente, publiquei aqui na Escotilha uma análise em que proponho um questionamento sobre as funções do jornalismo local. Na ocasião, eu discutia justamente uma interação feita por uma apresentadora com um grupo de pessoas que estava na Praça Tiradentes e recebia o comando de dizer uma palavra que definisse Curitiba.
Neste “fala povo” improvisado, um sujeito que estava presente também contrabandeia uma mensagem, na qual se posiciona contra um órgão da Prefeitura de Curitiba. A resposta (que também precisa ser ágil – afinal, estamos no incontrolável ao vivo) da apresentadora foi muito próxima da que foi dada no caso do fã do Foo Fighters: que aquele era o espaço errado para expor reclamações, que deveriam ser feitas no aplicativo. Fica evidente, então, que esta é uma postura institucional, estabelecida pela própria emissora.
Enquanto suporte para o debate público, os telejornais se enriquecem à medida que trazem à tona essa conversação pública, ouvindo os espectadores. Lembro, inclusive, que um dos quadros mais interessantes já apresentados por esse telejornal da RPC envolvia receber uma reclamação do público e ir até as autoridades com um prazo para que aquilo fosse resolvido, para depois voltar para cobrar.
O quadro, infelizmente, foi extinto. E o que tem se visto nos últimos anos nos telejornais (pego a RPC aqui como exemplo, mas com total ciência que este problema não é exclusivo da emissora) é o esvaziamento de sua função a partir dessa simulação de uma interação com os espectadores, que são encorajados a participar de forma algo vazia – por exemplo, mandando fotos bonitinhas do seu dia a dia ou baixando aplicativos para monitorar sua rotina.
Evidentemente, há um serviço muito mais importante que pode ser ofertado pelo jornalismo aos cidadãos. Basta priorizar aquilo que é mais importante e, é claro, saber ouvi-los.
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