Na última semana, um fato televisivo repercutiu nacionalmente ao quebrar o caráter protocolar esperado a esse veículo. Refiro-me ao buzz gerado pelo comentário feito ao vivo pela jornalista Jéssica Senra, apresentadora da TV Bahia, sobre uma possível contratação do goleiro Bruno (que cumpriu pena pelo assassinato de Eliza Samudio, mãe de seu filho) pelo time Fluminense de Feira de Santana. Dirigindo-se aos espectadores da afiliada da Globo, Jéssica fez um discurso bastante claro, sóbrio e contundente, defendendo a ressocialização de presos, mas criticando a possibilidade da volta de Bruno ao futebol profissional (veja o comentário aqui).
O comentário reverberou pelo país inteiro, culminando numa ação: o time acabou desistindo da contratação do goleiro. O debate, obviamente, tendeu para lados diversos. Houve os que acusaram a jornalista (que já fez outros comentários categóricos na TV) de “querer lacrar”- ou seja, de defender uma opinião incisiva para gerar likes em suas redes digitais. Houve os que louvaram a iniciativa da profissional, que estaria cumprindo uma função primordial do jornalismo, que é a defesa do interesse público e a contribuição para uma sociedade melhor.
Mas nesse texto, pretendo investigação a relação do episódio com a característica do meio televisivo: o que significa o ato de fala dessa apresentadora, e por que ele atinge repercussão nacional? O que difere este comentário de tantos outros feitos em TV ou, em escala maior, no imenso universo das redes digitais? E, acima de tudo, é legítimo que um jornalista exponha sua visão em meio a um veículo que divulga notícias, que supostamente excluem a subjetividade dos indivíduos que as produzem?
Inicialmente, gostaria de contextualizar a fala de Jéssica Senra dentro de um contexto. Arrisco pontuar que há um movimento, já há uns bons anos, que visa trazer o jornalista, enquanto sujeito, para dentro do jornalismo. Em 2015, já anotava que esta era uma tendência, uma espécie de “personalização” das figuras televisivas, que deixam de ser apenas mediadores e passam a ser quase como que amigos dos espectadores. Em cinco anos, isto só aumentou.
Isto tudo, é claro, é um efeito de discurso – afinal, não é porque um apresentador leu uma mensagem de WhatsApp de um cidadão ao vivo ou exibiu uma foto de seu filho que eles se tornaram próximos ou amigos. Mas esta “personalização”, esta ênfase constante no sujeito que traz a notícia (que agora, em meio às notícias, aparece cantando, abraçando o público, ou vai para a praia “entrevistar” os banhistas) é uma estratégia de proximidade que visa, indiscutivelmente, o lucro. No fim das contas, o objetivo máximo é a fidelização da audiência.
O que difere a fala de Jéssica da de outros comentaristas televisivos é a qualidade do seu argumento. Jéssica Senra posiciona-se sobre um tema cercado de dissenso de uma forma muito arrazoada, sem arroubos.
Por isso mesmo, não deveria se estranhar que os telejornais abram espaço para que profissionais emitam considerações pessoais – e são essas opiniões, ao fim das contas, que abundam nas agendas dos telejornais. Além disso, destaco que os comentaristas do jornalismo televisivo (articulistas como Arnaldo Jabor, Miriam Leitão, Gerson Camarotti, Paulo Francis) sempre tiveram uma função importante dentro do telejornal, fazendo uma síntese das notícias, e criando uma teia de sentidos que ajuda a significá-las ao espectador.
E o que difere o ato de Jéssica Senra dos “textões” que circulam na internet? O primeiro ponto é que ele é emitido pela televisão, veículo destinado a atingir um público em larga escala. O comentário, feito na afiliada da Globo na Bahia, apenas ecoou nacionalmente ao chegar nas redes sociais – mas a natureza da sua fala é justamente a televisiva e, por isso mesmo, breve, concisa e didática.
Além disso, destaco que o que difere a fala de Jéssica da de outros comentaristas televisivos (menciono aqui, por exemplo, Rachel Scheherazade, que angariou fama e chegou ao SBT em razão de suas opiniões ferozes) é a qualidade do seu argumento. Jéssica Senra posiciona-se sobre um tema cercado de dissenso – as políticas de punição no país e a efetividade delas – de uma forma muito arrazoada, sem arroubos, trazendo pontos envolvidos pela racionalidade. No entanto, não se acanha pela força das palavras nem busca eufemismos: refere-se ao ex-goleiro como feminicida durante toda a sua fala.
E é justamente pelo nível do seu comentário – que não grita, não se inflama, não apela à emoção – que ele consegue reverberar, atingir as mentes, acarretar em uma ação prática. E nutre, por fim, a esperança de que o convencimento pelo argumento lúcido (o princípio básico da política e da democracia) ainda seja uma via possível para o país.