A paranaense de Cruz Machado Ana Johann seguiu a carreira de diretora e roteirista de cinema, mas, desde criança, encantou-se pelo mundo das palavras. Foi preciso que houvesse uma pandemia para que ela se desse de presente (em suas próprias palavras) a chance de escrever um romance.
Nascia então História para Matar a Mulher Boa, publicação da editora Nós, em que Ana Johann conta ao mundo sobre Helena, uma mulher tolhida pelas expectativas alheias, com dificuldade para ouvir o próprio desejo. Em entrevista exclusiva à Escotilha, a escritora comenta sobre suas referências e sobre o quanto seu romance reflete sobre a vivência de outras mulheres.
Escotilha » O título do seu romance tem algo de universal: a ideia de que todas as mulheres são, desde o nascimento, treinadas para serem uma “mulher boa”, domadas às expectativas externas. Havia esse interesse de representar todas nós durante o processo de criação do livro? E você crê que todas as mulheres são acometidas por essa cobrança?
Ana Johann » Logo no início do processo, me veio o título e a partir dele eu soube que queria falar sobre o arquétipo da menina boa. Há muitos arquétipos e infelizmente por questões culturais os homens ao nascer já têm um cardápio bem mais extenso pra habitar. É como se ganhássemos uma moldura que mesmo não cabendo nela totalmente vamos dando um jeito de se acomodar, se aniquilar ou explodir.
“Acredito que todo escritor se ocupe da vida, mas com um recorte, um ponto de vista por que é sempre uma reconstrução”.
Ana Johann
O viés cultural dos papéis estabelecidos nos fazem acreditar o tempo todo que temos direitos iguais por trabalhar, por votar, ir e vir entre territórios, mas a verdade é que o nosso próprio território (o nosso corpo) é sequestrado por este molde. Acreditar que temos a igualdade entre homens e mulheres é como acreditar em meritocracia. Sabemos que nem todos tem a mesma chance e, quando se trata de mulheres, pensamos muitas vezes que inclusive não somos boas suficientes nas nossas profissões, mas se examinarmos a fundo somos excelentes, não só nas nossas profissões como boas em aceitar a condição que nos é imposta, e é disso que também se trata História para Matar a Mulher Boa.
Acredito que são poucas as mulheres que nascem em um ambiente com pais que não as moldam em um papel e mesmo as que têm essa liberdade possível, na rua, na escola, no trabalho, vão ser enquadradas. Vejo mulheres que trabalham fora e se acham independentes e homens com discursos de igualdade sendo servidos por mulheres sem levantar a bunda da cadeira sendo tratados como reizinhos. É muito raro em escolas vermos grupo de pais, é sempre grupo de mães, com um ou outro homem dentro do grupo quando tem. E isso são apenas alguns exemplos, temos infinitos.
Você tem uma carreira consolidada como roteirista e diretora. Como a produção literária entrou na sua trajetória? E houve a preocupação em usar elementos da linguagem cinematográfica no romance?
Eu sempre quis ser escritora antes mesmo de ser roteirista e diretora. Mas por questões de busca e também de gênero encontrei o roteiro e a direção como forma de expressão primeiro. Durante muito tempo hesitei até porque não me achava boa suficiente para escrever livros de literatura, já que é uma outra maneira de se relacionar com as palavras.
Veio a pandemia e decidi me dar de presente a escrita do meu primeiro romance, e não quero parar mais em nenhum dos meios – quero continuar escrevendo livros e fazendo filmes, trabalhando como roteiristas para outros autores também. Eu sou encantada por filmes que têm um aprofundamento de personagem e acredito que isso reverbera no meu romance, assim como pensar uma estrutura e a escrita de cenas que é do cinema e também da literatura. Agora, são formas distintas de narrar, e me apaixonei ainda mais pela literatura escrevendo este romance. Existe uma liberdade e profundidade na literatura que um tipo de cinema que impera, inclusive, não alcança. Os livros estão sempre na frente.
Ao acompanhar sua vida pessoal, descobrimos que você compartilha alguns pontos em comum com a protagonista de História para Matar a Mulher Boa, como ter crescido em uma vila rural e a aproximação com o cinema e o documentário. O quanto há de Helena na Ana?
Eu trabalho com narrativas pessoais e autoficção. Gosto de partir de incômodos e pensar em situações que vivi ou presenciei para fazer a famosa pergunta de Stanilasvski “E se?” para mudar situações, características de pessoas e aspectos de lugares.
Dentro do livro eu me ocupo de cidades e algumas situações que vivi, mas não posso dizer que é um livro autobiográfico. Acredito que todo escritor se ocupe da vida, mas com um recorte, um ponto de vista por que é sempre uma reconstrução. Clarice Lispector se perguntava se “há diferença entre escrever a verdade ou ter vivido a verdade”?
Neste sentido, gosto de me ocupar do sentimento de certas memórias para recriá-las também até em situações inventadas. E a Ana tem sim muito de Helena, no sentido que foi criada para ser menina dócil e obediente e seguir certos parâmetros sociais de casar, ter filhos, ter uma casa, uma vida financeira estável.
Eu fui criada para não narrar, não narrar inclusive os abusos que sofri, porque quem quer ouvir realmente da boca de uma mulher as violências que ela passou ou passa? Mas, como na narrativa, eu também encontrei desvios e formas de se aproximar de quem eu sou e quero ser porque é uma construção permanente.
E quando digo que fui criada para não narrar, nem falo sobre a criação dos meus pais, mas falo de uma cultura que está criando constantemente essa farsa para que os homens como pequenos reis tenham os melhores cargos, salários, oportunidades, possam andar livremente na rua e ainda em casa sejam servidos por uma mulher, mesmo ela trabalhando fora e tendo um salário.
Romper com as expectativas familiares que foram criadas para você é parte de matar a mulher boa. São as mulheres que se ocupam ainda muito da vida doméstica assim como era em 350 A.C., quando a mulher cuidava da vida doméstica para que o homem pudesse prosperar. Se o judiciário está à frente pensando em feminicídio e violências domésticas, por que os homens ainda matam as mulheres? O pertencimento do corpo feminino aos homens já foi um direito de honra e que infelizmente ainda permanece na cultura.
Por fim, quem são suas referências literárias e quem você se inspira na hora de escrever?
São muitas as referências que me inspiro – desde livros de filosofia, psicanálise, literatura e filmes. Na literatura tenho uma predileção por novelistas como Gabriel García Márquez e Elena Ferrante, que se utilizam de um contexto social para trazer vida e texturas em pessoas que sinto que são de carne e osso.
Também sou apaixonada por escritores que exploram a poética e o simbólico pela natureza como Olga Tokarczuk (Sobre os ossos dos mortos) Yasunari Kowabata (O som da montanha), Han Kang (A Vegetariana), Pilar Quintana (A Cachorra).
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