Talvez seja possível dizer que o título do romance da escritora e roteirista Ana Johann já traz uma espécie de spoiler sobre o que está contido neste livro. História para Matar a Mulher Boa (Nós, 2023) pretende operar como algum tipo de antídoto a praticamente todas as mulheres – ou, pelo menos, a todas nós que fomos encaixadas em uma cultura em que os homens sempre ditaram as regras.
Esta ideia se desenrola a partir da vivência de Helena, uma mulher nascida em uma comunidade rural, onde todo mundo se conhece. Contudo, a jovem parece ter vindo ao mundo com algo diferente, que poderia ser definido como um chip do desejo: ela quer mais do que foi programado a ela. E talvez justamente por isso, sua história se inicie por um pesadelo, em que Helena se vê enredada por uma cobra. O perigo está à espreita – ainda que o perigo, aqui, seja se tornar a mulher que foi prevista pelo pai, pela mãe e por todos os membros de seu pequeno grupo na Vila dos Hoffman, para quem os limites de uma aldeia escondem uma infelicidade inevitável.
Mas, conforme dito, para Helena, ser o que foi condicionado a ela já não basta. Ela quer. À superfície, seu desejo se expressa pela busca de um orgasmo, mas o fato é que há muito mais camadas nesta urgência de vida, que lhe foi tolhida desde a infância por todos em sua volta. Isso se expressa já no começo da obra em uma das frases mais inspiradas, em que a mãe diz à filha: “para que inventar coisas novas se as que existem funcionam?”.
Ana Johann, ao longo de seu romance de estreia, parece estar nos entregando a ideia de que, mesmo aquilo que “funciona” pode, em seu âmago, carregar a semente da destruição. E é provavelmente por esta razão que Helena, que casou “certo” com seu namorado de adolescência, que construiu uma boa fortuna e com quem tem uma filha, mantém o hábito de colocar vodca no suco. Ou seja: as coisas seguem operando na normalidade, ainda que cobrem um custo altíssimo de insatisfação para todos os envolvidos – e não apenas à protagonista.
O eterno retorno do desejo

Talvez um dos trunfos de História para Matar a Mulher Boa é que Ana Johann jamais nos oferece uma protagonista heroica, que não erra ou que segue um caminho em linha reta.
Milan Kundera, falecido recentemente, refletiu em algumas de suas obras (incluindo a mais famosa, A Insustentável Leveza do Ser) sobre o peso filosófico presente na repetição. Nos dramas amorosos envolvendo Teresa e Thomas, Sabina e Franz, ecoa o ditado alemão “Es muß sein”, que afirma “tem que ser!”, uma vez só não vale.
Pois a Helena de História para Matar a Mulher Boa demonstra o tempo todo um esforço em quebrar justamente a roda da inércia que rege o mundo. Pode-se entender essa repetição no contexto minúsculo e particular da Vila dos Hoffman, mas a verdade é que Ana Johann parece estar nos falando de um universo maior, em que todos – homens e mulheres – estão presos em papeis e funções que só existem à medida que não são questionados.
Há um contexto de fundo, bastante claro, remetendo às estruturas de um mundo patriarcal, em que o poder masculino inquestionável rege as relações humanas. E é por isso que a mãe de Helena se considera velha demais para abandonar o marido infiel, seu irmão lega de “herança” ao filho um comportamento suicida, e boa parte das mulheres presentes na trama são violentadas pelos maridos. Algumas, inclusive, morrem em riachos bastante rasos para que pudessem se afogar.
Só que a “morte da mulher boa” é gradativa. Ela se inicia na vida de Helena pela tentativa de fazer algum dinheiro vendendo calcinhas, empreendimento no qual é prontamente ridicularizada pela própria mãe. Em seguida, ela junta forças e consegue ir para Curitiba para fazer um curso universitário, o que lhe abre novas portas.
Mas o grande impacto em Helena começa a ocorrer quando ela ganha uma bolsa para estudar na Espanha. Lá, sua vida é tomada por novas experiências para além do enquadramento da realidade que lhe foi apresentado até o momento. No novo país, Helena entra em contato com novos parceiros, novas experiências profissionais e drogas alucinógenas que vão tornar o mundo que ela conhecia até então cada vez menor e mais opressor. Mas uma transformação importante é conhecer homens para quem os papéis de gênero historicamente estruturados não são mais suficientes.
Talvez um dos trunfos de História para Matar a Mulher Boa é que Ana Johann jamais nos oferece uma protagonista heroica, que não erra ou que segue um caminho em linha reta em busca de seus objetivos. Os altos e baixos de Helena faz com que sua história se torne crível e encontre fácil identificação com as leitoras, como se a biografia involuntária da mulher que matou a sua versão “boa” fosse uma conquista compartilhável entre todas nós. Afinal, independente do quanto andamos para chegar até aqui, todas ainda temos um lado “domesticado” que merece ser extirpado.
HISTÓRIA PARA MATAR A MULHER BOA | Ana Johann
Editora: Nós;
Tamanho: 256 págs.;
Lançamento: Julho, 2023.
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