Li Milan Kundera pela primeira vez por volta dos 18 ou 19 anos. Foi a sua obra mais famosa, A Insustentável Leveza do Ser, cujas cópias eu enxergava em praticamente todos os sebos que visitava. E, num verão, boiando numa piscina, passei uns bons momentos me comovendo com a história de Tereza e Tomas, Sabina e Franz.
Não sei por que, mas algo me fez decidir que este seria o livro da minha vida – tamanho o impacto que teve sobre mim. Havia algo de muito humano naquela história política, mas que, no fundo, tratava da universalidade dos sentimentos e das relações, especialmente as amorosas. A tristeza de Tereza, ao lidar com a natureza leve e fugidia do amado (ela, ao contrário, simbolizava, de certa maneira, o peso), continua ressoando dentro de mim.
O livro abriu uma porta para o contato com uma parte da obra do escritor tcheco, falecido aos 94 anos. Muitos anos se passaram desde minha leitura de A Insustentável Leveza do Ser, mas ele segue, para mim, detendo o posto de livro favorito do meu autor favorito.

Como leitora, encantei-me pelo estilo de escrita construído por Kundera ao misturar romance com ensaio.
Boa parte da sólida obra construída por Kundera – cujo nome foi especulado ao Prêmio Nobel de Literatura várias vezes, mas que nunca recebeu a láurea – apresenta uma leitura crítica ao regime comunista. Ele mesmo foi expulso do Partido Comunista e suas obras foram proibidas de circular na então Tchecoslováquia.
Mas este é propositadamente um texto pessoal. E, como leitora, encantei-me pelo estilo de escrita construído por Kundera ao misturar romance com ensaio. Em meio às narrativas que conta, o escritor tece considerações eruditas (citando filosofia, psicanálise e história, por exemplo) que fazem o leitor ir além da fruição estética.
Trago aqui uma lista de obras de Milan Kundera que me marcaram profundamente. Não falo de A Insustentável Leveza do Ser, de 1984, por motivos óbvios: já ficou claro que é meu livro favorito; e, por ser o mais famoso do escritor tcheco, há muito conteúdo sobre ele espalhado pela web.
A Brincadeira (1967)
Este é o romance de estreia de Kundera, escrito quando ele tinha 36 anos. Trata-se de um romance longo (cerca de 400 páginas) e envolvente que conta a história de uma “brincadeira”. Ludvisk, um jovem esquerdista da juventude comunista, manda um cartão postal para a namorada, Marketa. Na mensagem, um deboche, que é interceptado pelos comunistas, mudando todo o rumo de sua vida.
Ele busca uma vingança contra os que o perseguiram, mas sua vida segue em uma sucessão de frustrações. Em meio a uma história que tem um tanto de cômico, Milan Kundera já delineia as bases de seu estilo, trazendo suas considerações sobre temas diversos, como o erotismo e sobre o próprio socialismo.
Risíveis Amores (1969)
Obra composta por sete contos que focam em facetas dos relacionamentos amorosos – incluindo a mentira, a traição e o sexo. Mas há outros assuntos que perpassam a obra, como espiritualidade, a velhice, a morte e a existência de Deus. Leveza e peso – importando aqui a dualidade da sua obra mais famosa – convivem de modo magnífico nesta obra de Milan Kundera.

A Lentidão (1995)
Aqui temos uma obra menos conhecida de Kundera, mas igualmente marcante – a ponto de ser usada por Italo Calvino em seu famoso livro de ensaios sobre literatura Seis Propostas para o Próximo Milênio, para discutir o tópico “rapidez”.
Kundera parte de outro clássico – Ligações Perigosas, de Chordelos de Laclos – para debater sobre velocidade e lentidão, ao observar a sedução presente entre os personagens. Para o escritor, “quando as coisas acontecem rápido demais, ninguém pode ter certeza de nada, de coisa nenhuma, nem de si mesmo”. A vida só pode ser fruída de verdade quando abrimos espaço para a ociosidade da lentidão.
O Livro do Riso e do Esquecimento(1979)
Este é o primeiro livro de Milan Kundera publicado na França, país para o qual se mudou ao deixar a Tchecoslováquia, em 1975. São sete contos aparentemente independentes, mas que vão se entrelaçando com a leitura.
O contexto da obra é a Tchecoslováquia durante a invasão russa, e a ocorrência da Primavera de Praga, em 1968, quando a população foi às ruas exigindo reformas que garantissem a liberdade do país. Os personagens de O Livro do Riso e do Esquecimento estão angustiados em frente ao cenário tenso, e pensam sobre a memória e o esquecimento, além da natureza do riso.
Um conto em específico, chamado “Os Anjos”, é particularmente assombroso, e acompanha a morte onírica de uma personagem, Tamina, que vai parar em uma ilha de crianças, levada por um menino, tal como um Caronte reinventado por Kundera.
A Valsa dos Adeuses(1972)
Talvez esteja o romance mais conhecido do escritor, depois de A Insustentável Leveza do Ser. Ele se passa em uma estação de águas na Tchecoslováquia em que mulheres fazem tratamentos de fertilidade. Elas fazem acompanhamento com o famoso doutor Skreta, que tem resultados espantosos em seus métodos.
Neste cenário, uma enfermeira chamada Ruzena revela que está grávida de um homem, o trompetista Klima, com quem teve um caso rápido. Mas Klima é casado e não quer romper com a esposa, nem deixar na mão a mulher grávida. Em meio a isso, vários personagens se entrecruzam, tal como se fosse uma valsa, em que diversas más decisões são tomadas. Mais uma obra impactante de um escritor que fará muito falta.
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