Já na abertura de Caronte, livro do escritor e jornalista Rafael Waltrick, somos apresentados a uma cena violenta. Um homem é atropelado por uma caminhonete. O algoz é um sujeito que nos narra esta história em primeira pessoa, sem jamais ser nominado.
Mas logo descobrimos que esse não é um indivíduo qualquer. Nosso narrador, como o título do livro já entrega, é alguém que se situa em um limiar – a separação entre o mundo dos vivos e o mundo dos mortos. O homem é alguém que é perseguido por pessoas desencarnadas que deixaram o mundo antes da hora, por uma desgraça cometida por alguém.
Elas chegam a esse Caronte moderno para pedir auxílio para fazer a passagem para o mundo de lá, o que envolve sempre a eliminação daquele que causou a sua morte. Temos então um justiceiro nato, que se sente empoderado pela “missão” maldita que chegou até ele, sem que pedisse. Ele não sabe se há outros com a mesma sina, a capacidade de ouvir as súplicas dos desgraçados.
Isso acontece realmente, ou estamos diante de uma possível mente esquizofrênica? Estas são as questões que são tecidas de maneira bastante competente por Waltrick, cuja escrita atravessa vários terrenos: o do thriller, da narrativa de horror, mas ainda assim – por que não? –, trazendo leves toques de humor.
A graça da história de Caronte parece estar no fato de que esse assassino exerce uma profissão que é meio que o estigma do funcionalismo público e da repetição. Ele é bancário e, quando não está varando as noites em busca de suas próximas vítimas, está numa agência cumprindo – com ótimos resultados – um trabalho chato. Um burocrata, portanto, que à noite se reinventa como um justiceiro maldito.
Um assassino em Curitiba
Há um detalhe a mais que oxigena Caronte, que é o fato de que esta é uma história ambientada em Curitiba, cidade modelo de tantos discursos turísticos e vista por muitos como um exemplo de urbanidade. Rafael Waltrick, de forma perspicaz, vai anexando à trama elementos curitibanos bem pontuais que talvez só possam ser capturados pelos habitantes daqui, e que aos poucos denunciam: a cidade representada aqui está muito mais próxima da ambientação lúgubre do Vampiro de Curitiba do que da “cidade do amor” do prefeito Greca.
A cidade representada aqui está muito mais próxima da ambientação lúgubre do Vampiro de Curitiba do que da “cidade do amor” do prefeito Greca.
Os próprios curitibanos, inclusive, são abordados com um deboche fino. Em certo momento, o protagonista – que é um imigrante, vindo do Norte, e que se instala na capital do Paraná meio por acaso – conversa com o porteiro do seu prédio, interlocutor para o qual se preocupa em sempre passar uma impressão de normalidade (afinal, os porteiros são os olhos onipresentes da cidade).
O trabalhador pergunta ao homem se ele é natural de Curitiba. Ao ouvir que sim, desenrola-se a seguinte resposta: “Quem é daqui sabe. Respeita o lugar. É gente trabalhadora, que cresceu aqui, que foi atrás. Gente que nem o meu pai, que nem o senhor, que tem um emprego bom, fez por merecer. Mas, com o tempo, foi vindo gente de fora. De tudo quanto é lugar. O senhor sabe de onde. E aí virou bagunça. Porque a cidade virou famosa né, nessa coisa toda, de parque, de muito verde, dos ônibus (…). Essa gente de fora chega aqui achando que pode fazer o que quiser. E é gente que nunca trabalhou de verdade nem tá interessada nisso. E aí o que dá? Malandragem. Roubo. Droga”.
Em um diálogo de poucos parágrafos, Waltrick resume bem a xenofobia da “Curitiba dos curitibanos”, uma cidade que se orgulha da normalidade – e na qual, certamente, o assassino dos mortos não se encaixa. Contudo, de alguma maneira, ele mesmo se vê encarregado de fazer a “limpeza” da cidade, retirando os dejetos (aqueles que mataram alguém e continuam por aí).
Mas é justamente a presença de um sujeito torto – como um bancário que “carrega” os mortos para o lado de lá – em um cenário como esse que faz de Caronte uma obra surpreendente. Existe noir em Curitiba.
CARONTE | Rafael Waltrick
Editora: Urutau;
Tamanho: 136 págs.;
Lançamento: 2023.
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