Mais de 100 blocos de rua (do total de 676 cadastrados junto à Prefeitura de São Paulo) desistiram de participar do Carnaval, a poucos dias do começo do período da festa. Representantes dos blocos cancelados argumentam que houve pouco diálogo com o poder público, além de problemas gerados pelo desinteresse político em fazer o Carnaval de rua acontecer.
José Cury, do Fórum Aberto de Blocos do Carnaval, um dos representantes ouvidos pela reportagem, aponta problemas ocorridos durante a gestão do atual prefeito Ricardo Nunes, que assumiu o posto após o falecimento de Bruno Covas. Escotilha ouviu organizadores de blocos que tiveram cancelamento total ou parcial de sua participação para entender o impacto das questões trazidas pelo cancelamento e o que o fato revela sobre como o poder público tem tratado a festa na cidade.
Problemas organizacionais e falta de transparência
Há quem defenda que o Carnaval de São Paulo é o maior do Brasil, tendo em vista a quantidade de pessoas que é capaz de aglomerar e a movimentação financeira. Esta declaração chegou a ser dada em 2023 pelo governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas, ao apontar que o Carnaval paulista faz circular cerca de 2 bilhões de reais, além de agregar 15 milhões de foliões.
A maior parte dessa mobilização envolve o Carnaval de rua, organizado na cidade, a partir de 2024, pela Secretaria de Subprefeituras (antes, a gestão era feita pela Secretaria de Cultura). De acordo com José Cury, a desvalorização do evento começou durante a gestão de João Doria, o que motivou a formação de coletivos dos blocos – entre eles, o Fórum Aberto dos Blocos de São Paulo, criado com o mote de defesa do direito da cidade ao Carnaval e à cultura popular.
A organização entre os grupos é apontada por especialistas como a principal razão para que o evento crescesse em tamanho, seja de foliões ou do número de blocos. Contudo, a pandemia, seguida do falecimento do prefeito Bruno Covas, teria levado a uma nova fase, culminada na gestão Ricardo Nunes – que, segundo as fontes ouvidas pela reportagem, não prezou pela escuta e pelo diálogo com os blocos.
O Bloco Feminista, surgido em 2021, quase cancelou as suas apresentações. Juliana Matheus, cofundadora e diretora, está entre as que endossam as críticas de pouco contato da Prefeitura com os organizadores para verificar as suas demandas. “É a gente que faz o Carnaval e não participamos da construção dele por conta da falta de diálogo com a gestão municipal, e isso prejudica a festa. Hoje, das cidades que fazem Carnaval de rua, só São Paulo é festa matinê. Nas outras, ela termina próximo às 22h. Não é tradição de a cidade terminar à luz do dia, é uma imposição que prejudica e muito a festa”, afirma Juliana.
“O poder público acaba criando um edital que não vai contemplar o seu João, da Brasilândia, que mobiliza seu bairro”.
José Cury
Outra reclamação frequente envolve a desorganização e a falta de transparência no edital que selecionou os blocos que receberiam fomento financeiro. Faltando menos de um mês para o início dos cortejos, a Prefeitura ainda não havia decidido o patrocinador oficial do evento, que seria responsável por repassar a 100 blocos incentivos no valor de R$ 25 mil. Tampouco a agenda havia sido divulgada pelos órgão competentes, ainda que as datas dos desfiles de rua já estivessem decididas.
O bloco Jegue Elétrico, que completa 24 anos em 2024, foi um dos que cancelou uma de suas passagens, que ocorreria no dia 12 de fevereiro. Emerson Boy, criador do bloco, afirma que o atraso do edital foi preponderante. “Enquanto, em outros estados, tudo foi resolvido em novembro e dezembro, em São Paulo as coisas só caminharam no dia 16 de janeiro”, comentou. Ainda que contida, a inflação dos últimos 12 meses impactou os custos de realização dos desfiles. “Está muito difícil colocar bloco na rua, pois o valor é muito alto”, explica Boy.
A confusão fez com que apenas 229 blocos se inscrevessem para concorrer ao incentivo, responsável pela preparação dos desfiles, cuja ausência, em casos específicos, pode sinalizar a não realização do cortejo, ou mesmo cancelamento da participação. O resultado, questionado por alguns dos blocos, saiu no último dia 29 de janeiro, segunda-feira. De acordo com o criador do Jegue Elétrico, o edital teria premiado blocos de produtoras não paulistanas, que não possuem vínculos, afetivos e econômicos, com os bairros e seus moradores. “Os blocos vem para cá, ganham dinheiro e vão embora, e a gente continua aqui, trabalhando com as comunidades e discutindo com os coletivos”, pontua.
À reportagem, Emerson Boy também questionou os “megablocos”. Essa é a maneira como são chamados os blocos que trazem artistas nacionalmente conhecidos e, por isso, atraem muita gente – além de arrecadar muita verba publicitária. A alegação dos reclamantes é que estes blocos, por conta da presença de artistas reconhecidos, receberiam “mais de uma vez”. Ainda de acordo com o organizador do Jegue Elétrico, estes grupos receberiam da Prefeitura o direito de passar pela cidade nos melhores lugares e horários. “Nós fazemos o Carnaval de São Paulo. Esta é a real”, desabafa.
Entre os contemplados, há casos como o Agrada Gregos, com participação de Gretchen, Gloria Groove e Banda Uó, e o Pinga Ni Mim, com os sertanejos João Bosco e Vinícius. Outros nomes famosos também ocuparão o Parque Ibirapuera (onde estão concentrados), ainda que sem o incentivo do governo do município, como o Bloco da Pabllo (Pabllo Vittar), Bem Sertanejo (Michel Teló) e o Bloco da Latinha Mix (Alok, Di Ferrero e a atração internacional Sofi Tukker).
Representantes dos blocos falam de má intenção política da Prefeitura
Integrante do Fórum Aberto de Blocos do Carnaval, José Cury acredita haver má intenção política quanto ao Carnaval de rua. As dificuldades se expressariam também no aumento da burocracia. “Ano retrasado, foi feito o primeiro fomento em forma de prêmio de R$ 14 mil a todos os blocos que se inscrevessem. Mas isso foi executado sob a modalidade de fomento a projetos culturais, o que impossibilitou que muitos blocos se inscrevessem, pois não têm os documentos necessários”, explica.
Esse movimento da Prefeitura, portanto, estimularia um Carnaval mais “profissional”, envolvendo produtoras, e não o fomento à manifestação cultural da comunidade. “O poder público acaba criando um edital que não vai contemplar o seu João, da Brasilândia, que mobiliza seu bairro, gira a economia durante o período, mas não tem o documento regularizado que ele precisaria. Isso acaba privilegiando blocos maiores, com mais condição técnica para concorrer e receber a verba”, explica Cury.
José Cury e Emerson Boy opinam que os critérios para os contemplados não foram transparentes. “O edital tem um sistema de pontuação e uma exigência mínima. Passaram 169 blocos. Mas são contemplados os 100 primeiros, sem transparência sobre quais seriam os critérios”, agrega Cury. Além disso, há o problema de que a verba concedida será paga após a ocorrência do Carnaval, trazendo dificuldades para a execução dos desfiles.
Juliana Matheus conta que o Bloco Feminista sairá com dois cortejos em 2024, mas o grupo quase desistiu de participar no Carnaval este ano. “As razões são: falta de apoio do poder público a bloco comunitário. Tivemos um edital, mas o dinheiro não saiu e para cobrir os custos estamos fazendo vaquinha e rifas, mas mesmo assim ainda não pagamos todas as contas”, comenta.
Procurada pela reportagem, a Prefeitura de São Paulo informou, em nota, ter realizado reuniões com os representantes dos blocos de carnaval desde dezembro de 2023 por meio das 32 Subprefeituras da Secretaria Municipal das Subprefeituras (SMSUB), e que os trajetos foram analisados em conjunto com a Comissão Especial, cabendo a aprovação à Companhia de Engenharia de Trânsito e órgãos de segurança pública. Sobre a reclamação de lentidão do edital e às dificuldades financeiras dos organizadores, afirmou ter firmado o contrato de patrocínio apenas com a Ambev, vencedora da licitação, no valor de R$ 26,6 milhões.
A nota segue pontuando que R$ 2,5 milhões foram destinados a 100 blocos para incremento de suas atividades, e que, em 2024, o plano de ação da gestão municipal levou ao crescimento de 16% no número de blocos confirmados em relação a 2023 – dados do dia 5 de fevereiro indicam 535 desfiles de blocos por São Paulo. Sobre o cancelamento de blocos, a posição do governo de Ricardo Nunes é que “se algum bloco ou outro desiste, trata-se de um problema único e exclusivo da organização dele”.
Perigo das altas temperaturas
Em 2024, mais de cem blocos assinaram um manifesto direcionado à Comissão Especial de Organização do Carnaval de Rua 2024, em uma carta aberta nomeada “As Águas Vão Rolar“. No documento, os blocos pedem do poder público condições adequadas para a realização dos desfiles, como instalação de pontos de acesso ou distribuição gratuita de água potável e flexibilização de horários de saída dos blocos de Carnaval de acordo com as condições climáticas.
Segundo os representantes dos blocos, algumas dessas reivindicações não foram atendidas. “São Paulo deveria estar há pelo menos 15 dias com várias campanhas publicitárias no ar de serviço sobre o Carnaval para o cidadão. Hoje não temos certeza se a Secretaria da Saúde vai montar os postos de acolhimento com outras secretarias nos locais que falou em número suficiente para a cidade. Não temos também a quantidade de água que eles são obrigados a comprar conforme a lei”, afirma José Cury.
Ouvida pela Escotilha, o governo municipal afirmou que a Sabesp deve oferecer 50 mil copos de água em tendas de saúde espalhadas pela cidade. Contudo, elas serão distribuídas apenas em tendas de atendimento médico. Já no Parque Ibirapuera, onde saem os megablocos, haverá um caminhão-tanque. Em seis estações de metrô com mais fluxo (República, Palmeiras-Barra Funda, Vila Madalena, Paraíso, Vila Mariana e Sé), haverá a instalação de bebedouros, que ficarão em operação de sábado (10) a terça (13), das 10h às 17h.
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