Em seu livro Cativeiro Sem Fim, o experiente jornalista Eduardo Reina compartilha uma história terrível: a de bebês, crianças e adolescentes que foram sequestradas durante a ditadura militar pelo fato de serem filhos de pessoas consideradas “subversivas” pelo regime. Os casos – 19 registrados até agora – falam de vidas que foram ceifadas por violências físicas, financeiras e psicológicas, incluindo a perda da verdadeira identidade.
A obra, publicada em 2019, soma-se aos trabalhos deste jornalista investigativo em torno da revelação de tragédias provocadas pela ditadura. Com passagens por O Estado de São Paulo, Diário de S. Paulo, Diário do Grande ABC, Comércio do Jahu, Diário Popular e Guia 4 Rodas, Reina é atualmente coordenador da Agência Brasil em São Paulo. Também escreveu os livros Depois da Rua Tutoia (2016) e No Gravador (2003), além de ser autor de contos que integram os livros O Conto Brasileiro Hoje, vol. 5 (2007) e Contos e Casos Populares (1984).
Em entrevista exclusiva à Escotilha, Eduardo Reina conta sobre como foi o processo de produção de Cativeiro Sem Fim e sobre as dificuldades para se fazer jornalismo investigativo hoje.
Escotilha » Cativeiro Sem Fim trata de um tema ainda pouco conhecido sobre um método de combate pouco conhecido que foi usado pelo governo militar, que é o sequestro das crianças filhas de militantes políticos. Quais foram as principais dificuldades para levantar essas histórias? Houve momentos em que você achou que não conseguiria descobrir muita coisa?
Eduardo Reina » O livro reportagem, que completa agora no começo de abril cinco anos de seu lançamento, é fruto de intensa pesquisa realizada entre 2016 e 2019. Antes disso havia tido muita dificuldade para conseguir contatar vítimas reais desse tipo de crime, muito comum nos países vizinhos ao Brasil na América do Sul.
Houve momentos – antes de 2015 – que praticamente havia desistido do tema. Mas as descobertas do livro são fruto de insistência, persistência e um pouco de ousadia. Aproveitei uma proposta para escrever um romance, uma ficção, para jogar luz sobre este tema do sequestro de crianças, filhos de militantes de esquerda, pelos militares durante a ditadura. A ousadia veio atrelada a essa proposta, pois pensei que as vítimas reais desse crime no Brasil, ao tomarem conhecimento do livro de ficção, criassem coragem para falar sobre o tema.
E deu certo, pois dois meses depois do lançamento do romance – Depois da Rua Tutoia – fui procurado pela filha de Rosângela Serra Paraná, que foi sequestrada ainda bebê e criada por um militar. O romance me levou a participar de debates sobe a ditadura que criaram pontes e acesso a militantes de direitos humanos na região do Araguaia, onde encontrei novas vítimas desse crime.
As dificuldades principais foram inicialmente encontrar as vítimas reais e depois conseguir obter a confiança delas para que me contassem suas histórias de vida. O processo restante na elaboração do texto são decorrentes de técnicas jornalísticas de investigação, custosas, demoradas e trabalhosas, mas exequíveis.
“O principal entrave para se fazer jornalismo investigativo no Brasil é dinheiro. Custa caro ter um repórter ou uma equipe destacados para uma empreitada dessa monta por vários dias”.
Eduardo Reina
Você narra muitas histórias pessoais terríveis de vítimas que sofreram consequências seríssimas por conta deste método de guerra usado pelos militares para aniquilar os “subversivos”. Ainda que todos casos sejam trágicos, houve algum que o chocou mais?
Cada caso tem seu potencial dramático e desumano. Cada caso tem suas consequências. Penso que o sequestro dessas crianças e bebês, com o objetivo de aniquilar o inimigo da pátria, segundo a versão dos militares, é tão grave ou mais do que a tortura, morte e desaparecimento. Imagine você ter cerca de 50 anos de idade e descobrir que você não é você, que as pessoas que diziam ser seus pais são pessoas estranhas, criminosas. E que podem ter ajudado a matar seus pais biológicos. É um exercício enorme de empatia tentar se colocar no lugar delas, que perdem a identidade, o chão e as esperanças de vida. Se tornam prisioneiras de si mesmas, em busca de algo praticamente inatingível, que são seus pais biológicos.
Os casos dos sequestros dos filhos dos camponeses são de uma desumanidade sem tamanho. E o sequestro por engano acrescenta uma camada mais dura ainda em toda essa coisa. Mas o caso de Rosângela também é cruel, devido a toda sorte de castigos a que foi submetida pela mãe apropriadora, e a ligação do pai militar, que era motorista do general e ex-presidente Ernesto Geisel, também é emblemático.
Depois da publicação do livro, surgiram novos casos? Você planeja divulgá-los e fazer novas reportagens sobre eles?
Desde o lançamento do livro em 2019, mais de 50 pessoas me procuraram dizendo-se ser vitimas desse crime. Mas entendo, ao comparar o que me foi explicado por elas com o processo de apuração dos casos relatados no livro, que muito mais da metade não se enquadra nesse crime, filhos de militantes políticos levados pelos militares e entregues a famílias de militares. São casos de adoção à brasileira, que não deixa de ser um crime pelo modo como muitos ocorreram, mas fora desse escopo.
Gostaria muito de poder ampliar a apuração desses novos casos. Mas é um processo demorado, custoso e que demanda muito trabalho.
O processo de desenvolvimento de Cativeiro Sem Fim foi realizado de forma independente. Quais são os entraves hoje para fazer jornalismo investigativo no Brasil? É ainda possível desvendar outras histórias da ditadura que ainda não vieram à tona?
O principal entrave para se fazer jornalismo investigativo no Brasil é dinheiro. Custa caro ter um repórter ou uma equipe destacados para uma empreitada dessa monta por vários dias. E na apuração de casos como esses, é necessário não somente alguns dias, mas semanas, meses para descobrir, desvendar, levantar dados e documentos, fazer entrevistas, checar e rechecar informações. É uma decisão editorial de cada veículo.
Destaco que a mídia independente vem fazendo um trabalho importante quando o tema é história da ditadura no Brasil. Eu chamo de jornalismo de reconstrução o trabalho desenvolvido no processo de investigação que levou ao Cativeiro Sem Fim. E essa técnica de jornalismo pode ser utilizada também para desvendar e denunciar uma série de outros crimes cometidos pelos militares durante a ditadura e que sequer são conhecidos pela historiografia, pela mídia e pelo povo brasileiro. Há muito o que se contar ainda.
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