Há pelo menos uma década temos testemunhado um fenômeno que chamaria de “personalização no jornalismo“, sobretudo no televisivo, em um movimento estético que privilegia a informalidade e a criação de uma sensação de proximidade dos jornalistas com o público. Alguns falariam de “humanização”, na tentativa de colocar um verniz bonito, mas o fato é que o pano de fundo das emissoras, claro, é a busca da audiência.
Podemos creditar essa mudança gradativa principalmente a dois fatores. Um deles seria a ascensão dos reality shows – que, como afirma Maurício Stycer nesta coluna, é a última grande novidade da televisão. Tidos inicialmente como programas não roteirizados e que entregam ao público algo raro, que é a suposta experiência de autenticidade da “vida real”, eles ajudaram a sedimentar o valor da emoção genuína como o que haveria de mais desejável.
Os jornalistas televisivos têm, historicamente, uma postura protocolar e rígida típica do veículo, e precisaram aos poucos se adaptar a essa tendência, focada mais no relaxamento e na espontaneidade. Ou seja: não bastaria mais que eles veiculem notícia, pois tem se tornado cada vez mais necessário expor que eles se importam com aquilo que estão narrando.
O segundo fenômeno é a consolidação das redes sociais, que formaram novos atores produtores de mídia cujo apelo se baseia justamente nesse quesito duplo entre personalidade e autenticidade. Falo aqui dos influenciadores digitais, pessoas que podem ser definidas por sua capacidade de agregar um grande número de seguidores, o que, ao menos em teoria, concede a eles uma espécie de poder: o de (como sugere o próprio nome dessa nova profissão) influenciar as decisões e as opiniões daqueles que os veem e ouvem.
Colocar influenciadores na TV não deixa de ser um desdobramento dessa estratégia de exposição de intimidade dos jornalistas.
Frente a isso, chegamos uma questão que têm se tornado mais discutida nos últimos anos, com a ocorrência de grandes eventos de repercussão mundial e que tradicionalmente foram narrados à população por jornalistas. Primeiro, foi o Carnaval de 2024, no qual a Globo resolveu investir em influenciadores na crença de que eles, que mobilizam milhões de pessoas nas redes, carregariam esse mesmo público para a TV.
Mas o resultado foi desastroso. Analistas de televisão pontuaram a ocorrência uma cobertura fraca e rasa em informação, uma vez que esses profissionais levam para esse trabalho, principalmente, as suas presenças e as suas performances, quase sempre engraçadinhas. Contratados como Vitor diCastro reagiram às críticas com certo desdém. “O cachê está na conta”, disse em participação no podcast Mesa Cast BBB, da Globoplay.
O que se viu nesse episódio, portanto, foi o levantamento de um importante debate: em que medida apostar em nomes surgidos na internet por conta de suas personalidades (e não em razão de um trabalho jornalístico) é uma boa escolha para os veículos tradicionais, como a televisão?
Influenciadores nas Olimpíadas de Paris
Chegamos então à cobertura dos Jogos Olímpicos de Paris, recém iniciados. Mesmo estando na primeira semana, já tivemos um episódio controverso na cobertura da CazéTV, canal de YouTube retransmitido na Twitch, Prime Video, Samsung TV Plus e Mercado Livre, e que está se posicionando como uma cobertura alternativa à da Globo.
Fundada pelo apresentador Casimiro Miguel, conhecido como Cazé, a CazéTV se sustenta na proposta jovial e engraçada que tornou o seu criador famoso ao comentar partidas de futebol. Por consequência, o que surgiu de maneira informal hoje já ocupa um prédio de cinco andares com tecnologia de ponta e vários profissionais contratados.
Conforme retratado em matéria da Folha de São Paulo, a CazéTV entra na cobertura das Olimpíadas 2024 com um grande investimento: são 200 profissionais envolvidos, sendo 55 comentaristas, 12 narradores e 11 repórteres em Paris. Além, claro, dos famigerados influenciadores digitais, que atuam em várias frentes.
As Olimpíadas mal começaram, mas um episódio envolvendo influenciadores já gerou imensa repercussão negativa. Em uma mesa redonda na CazéTV, uma influenciadora chamada Blogueira de Baixa Renda constrangeu a jogadora de vôlei Adenizia sobre uma fofoca envolvendo a seleção brasileira de vôlei feminino. A atleta, visivelmente incomodada, tentou desconversar.
“A gente não quer criar fofoca com ninguém!”
Em editorial, CazéTV rechaça polêmica com Blogueira de Baixa Renda e lava as mãos: informa que Zona Olímpica é um “programa de brincadeira” mas “ninguém tá de sacanagem”. 👇 pic.twitter.com/67T0yinT1b
— Chico Barney (@chicobarney) July 27, 2024
O que se seguiu nas redes sociais foi uma enxurrada de hate contra a postura de Nathaly Dias, nome verdadeiro da Blogueirinha de Baixa Renda. Depois do episódio, a influenciadora gravou um vídeo em que afirmou que a transmissão era para ser algo leve e que não havia sido chamada como especialista. Subentende-se aqui que a lógica do convite da CazéTV é aproveitar o produto base oferecido por influenciadores: quantidade de seguidores.
Seguiu-se a isso um “mini gerenciamento de crise” da CazéTV em que colocou seus apresentadores (um deles sendo a própria Adenizia) para fazer uma espécie de editorial. Justifica-se ali que o programa Zona Olímpica, em que o caso aconteceu, é a parte “leve” da cobertura, e que serve para relaxar da tensão dos jogos. “Mas com muito respeito”, acrescentou Adenizia.
Pode-se dizer que tudo isso serve, mais uma vez, para refletir sobre a natureza do trabalho jornalístico e o quanto isso tem sido contaminado pelos fatores listados ao início desse texto. Colocar influenciadores na TV ou pelo menos no tipo de cobertura que antes era feita exclusivamente por ela não deixa de ser um desdobramento dessa estratégia de exposição de intimidade dos jornalistas, essa chamada humanização, como se esse fosse o “produto” posto à venda por esta profissão tão necessária para a saúde dos regimes democráticos.
Considero essa onda de influenciadores digitais como uma versão moderna da corrida da Serra Pelada. Muitos estão lá em busca de um dinheiro relativamente fácil (afinal, é mais “divertido” e “leve” construir uma carreira por meio da visibilidade do que pelo conhecimento em tal assunto). Mas tal como aconteceu no fatídico garimpo no Pará, poucos sairão dali ricos, e a maior parte perderá muito (talvez aqui possa se encaixar o caso da Blogueira de Baixa Renda, ou de PC Siqueira, que se suicidou em 2023).
Em entrevista à revista Quem, o experiente apresentador André Rizek, que comanda o principal programa sobre a competição esportiva no SporTV, fez uma previsão: de que essas seriam Olimpíadas “de muito ego” por conta do investimento em influenciadores. “Sempre vou achar que o mais importante é a notícia, e não o meu rosto em primeiro plano”, afirmou. E ainda acrescentou: “se tiver uma coisa fantástica acontecendo, a gente vai ver isso com o influenciador no primeiro plano. Pra mim, que sou mais old school, é um pouco estranho”.
Embora a CazéTV seja obviamente um produto digital, e não uma TV tradicional, dá para dizer que a repercussão de episódios como esse é importante pois faz notar que a audiência ainda tem clareza da necessidade do jornalismo profissional como a mediação mais confiável para traduzir o mundo.
ESCOTILHA PRECISA DE AJUDA
Que tal apoiar a Escotilha? Assine nosso financiamento coletivo. Você pode contribuir a partir de R$ 15,00 mensais. Se preferir, pode enviar uma contribuição avulsa por PIX. A chave é pix@escotilha.com.br. Toda contribuição, grande ou pequena, potencializa e ajuda a manter nosso jornalismo.