Uma norte-americana chamada Mary Jayne Buckingham está processando o canal Fox. A acusação: ter sido persuadida a cozinhar durante 14 horas na 11ª edição do reality show MasterChef USA enquanto sofria um derrame. Competidora do programa, Mary Jayne relatou que, no dia daquela gravação, ocorrido em 10 de março de 2020, ela relatou aos médicos presentes na gravação de que estava com sintomas associados a um derrame, como flacidez em um lado do corpo e tremedeira nas pernas.
Ao dizer que acha que não conseguiria cozinhar no episódio, seu atendimento teria sido negligenciado, e ela foi pressionada a seguir no desafio para não atrapalhar as gravações, já que envolveria remarcar as filmagens. Mary Jayne só teria sido levada ao hospital apenas 14 horas depois. Segundo o processo, isso a levou a sofrer sequelas muitos piores do que se tivesse sido deslocada para o atendimento no momento em que relatou os primeiros sintomas.
A notícia, claro, é aviltante – pelo menos aos que se encontram em seu juízo normal. Porém, daria para dizer que a sua essência não é tão rara assim, pois é relativamente comum vermos provas em programas reality shows que celebram o sofrimento, normalmente ressignificado sob o termo de resistência. E talvez uma das grandes questões aqui seja pensar não apenas por que alguém se submete a um tipo de pressão desse tipo em troca de alguma coisa (fama? Dinheiro?), mas também o quanto estamos dispostos a assistir a essas provas sem muito incômodo. Ou, alguém poderia dizer, com alguma espécie de prazer.
O prazer de provas de resistência
Quem assiste a Big Brother Brasil ou Power Couple Brasil sabe: em certo momento do jogo, os participantes serão colocados em provas que testam o que se chama de sua “resistência” – o que, na prática desses programas, significa colocar-se em situações que geram algum tipo de sofrimento ao seu corpo, à sua mente ou ambos. Em Power Couple, há sempre uma prova em que as mulheres, supostamente mais frágeis e sensíveis, precisam entrar em contato com animais peçonhentos ou ameaçadores, como baratas, cobras e aranhas.
É relativamente comum vermos provas em programas reality shows que celebram o sofrimento, normalmente ressignificado sob o termo de resistência.
Já no BBB, há um clássico que são as provas de resistência que celebram o tempo da duração, que envolver ver o quanto os brothers conseguem permanecer em uma situação específica sem se alimentar, beber água, dormir ou evacuar.
No BBB 18, os participantes Kaysar e Ana Clara permaneceram durante 42 horas e 58 minutos nessa condição, enquanto participavam de uma prova ocorrida em uma plataforma que girava em torno de um carro. A prova foi encerrada pela própria produção (provavelmente por questões legais) e ambos foram decretados vencedores.
Em um livro chamado Rituais de sofrimento, a socióloga Silvia Viana apresenta a ideia de que os reality shows seriam hoje uma espécie de tradução midiática das relações de trabalho e do mundo contemporâneo de modo geral. Um programa como BBB, fundamentado numa competição exacerbada entre as pessoas e na naturalização do voyeurismo, seria um reflexo destes elementos presentes na cultura.
Silvia Viana escreve: “(saber da natureza do programa) não impede que uns se submetam e outros castiguem, nem que aqueles que se submetem também castiguem. Pelo contrário, a participação é a pedra fundamental do espetáculo. Mais que a aceitação passiva desse princípio nem um pouco subjacente, o programa conquista o engajamento ativo, frequentemente maníaco, nessa engrenagem de fazer sofrer.
Os participantes devem selecionar semanalmente alguns pescoços a serem encaminhados ao cadafalso, a dedicação febril à escolha apenas perde em intensidade para a dedicação a levar o escolhido a perder a cabeça”.
Ainda que o público pareça ser mera testemunha desse sofrimento – sua função, crê, seria passiva: apenas votar – a verdade é que há um tanto de sadismo compartilhado nessa empreitada de ver os “limites” sendo transpostos. O valor do “exceder limites”, “correr um quilômetro extra”, “sacrificar-se em prol de um resultado heroico”, vale lembrar, é linguagem recorrente dos coachs, profissionais contemporâneos que simbolizam a busca de uma performance a qualquer custo.
Na semana passada, o BBB 22 realizou mais uma prova de resistência, patrocinada pelas Americanas, e que foi celebrada por ter entrado no ranking de provas mais longas. Ela durou 23 horas e 51 minutos, após encerramento da produção. Neste tempo, os participantes permaneceram de pé dentro de um carrossel que girava e jogava substâncias em seus rostos. Uma participante, Natalia, disse que estava tendo alucinações, e vários memes foram gerados a partir do estado físico dos brothers, que eram filmados em close por uma câmera que circulava.
Os memes, como o que contrapunha uma imagem posada de Lucas pré-BBB com outra em que ele ria na prova, com olhos arregalados e ares de loucura, foram associados a discursos de humor (como aquele “no Instagram/ na vida real”) que se dissociavam dos efeitos das provas de sacrifícios sobre aquelas pessoas. E assim seguimos, sendo partícipes alegres destas cenas de sofrimento voluntário.
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