Uma foto me confronta. Eu a reencontro, depois de muito tempo, em uma velha caixa de papelão decorada com flores, na qual se misturam outras imagens de infância, adolescência e juventude. São rastros de viagens de férias feitas ao longo dos anos, festas com amigos, minha formatura, cartas, postais, ingressos de shows inesquecíveis, cartões de embarque e papéis variados, que eu costumava guardar como provas de que realmente tinha vivido aquilo tudo.
Ao me deparar com aquele instantâneo em preto e branco, feito há mais de quatro décadas, o desconforto e a perplexidade são inevitáveis. O registro é de uma festa cívica, e eu deveria ter uns 6, 7 anos. Estava a bordo de um tanque do Exército Brasileiro, bandeira brasileira em punho, feliz por estar exaltando a pátria amada. Sem ter qualquer noção do que se passava.
Havia acabado de conhecer de perto o general Emílio Garrastazú Médici, então presidente do Brasil, em companhia de minha turma do colégio, no Rio de Janeiro. Na foto, apareço em uma das janelas de um imponente veículo militar, ao lado de um colega, que aparece, sorridente, na outra. Parecemos contentes, ou talvez o fotógrafo nos tenha pedido expressões alegres, hoje congelados pelo tempo, e agora revestidas de uma certa ironia não tão inocente. O ano era 1972, quando foram comemorados os 150 anos da Independência do Brasil.
Por mais que eu tente, não consigo recordar em muitos detalhes esse dia, que se materializa dentro de minha cabeça graças a essa foto, é claro, e a relatos que ouvi ao longo dos anos e foram se tornando uma narrativa construída, não necessariamente fiel aos fatos. Fomos todos levados à cerimônia de ônibus, que se realizou nas dependências de um quartel do Exército, com direito a visita guiada e a cumprimentar o então chefe de Estado, que na minha cabeça era um velho gaúcho com cara de bonzinho. A palavra ditador não havia ingressado ainda em meu vocabulário e foram necessários alguns anos para que eu compreendesse seu real significado.
“Havia acabado de conhecer de perto o general Emílio Garrastazu Médici, então presidente do Brasil, em companhia de minha turma do colégio, no Rio de Janeiro. Na foto, apareço em uma das janelas de um imponente veículo militar, ao lado de um colega, que aparece, sorridente, na outra. Parecemos felizes, ou talvez o fotógrafo nos tenha pedido expressões alegres, hoje congelados pelo tempo, e agora revestidas de uma certa ironia não tão inocente.”
O evento não foi motivo de festa em minha casa, mas também não me lembro que alguém da família, ou mesmo no colégio onde estudava, tenha feito qualquer objeção à nossa participação na cerimônia. Pelo contrário: havia um certo entusiasmo entre os professores, e um clima de excitação entre nós, ansiosos por sair de sala de aula e passear. Lembro que, no caminho, cantávamos “Eu te amo, meu Brasil, eu te amo/Meu coração é verde, amarelo, branco azul anil”, sucesso do grupo Os Incríveis puxado por um dos professores que nos acompanhavam. Era um dia festivo, enfim. E esse alheamento entusiasmado em relação ao que estava acontecendo no país, à censura, à repressão, às torturas, hoje me causa tanto espanto quanto inquietação.
Recordo que voltei à casa, naquela tarde, feliz com minha bandeirinha, e, dias mais tarde, recebemos a foto que hoje me confronta e agora ilustra este texto. Ela me coloca na posição de figurante de um momento sombrio da História e, por algum motivo, acho importante compartilhá-lo, de meu ponto de vista muito particular, talvez para que ele não se repita com outros meninos do Brasil.