A artista multimídia Miranda July tem um estilo tão particular que é difícil para nós, seus muitos fãs, nomeá-lo. Como uma espécie de caçadora de solidões e das pequenas estranhezas presentes em todos nós, July já mostrou, em seus livros, sua capacidade de levar as suas percepções do mundo – tão sensíveis quanto engraçadas – para a narrativa escrita. Em seu primeiro romance, O Primeiro Homem Mau, ela nos revela a vida de uma mulher desencaixada de tudo que busca algum sentido a partir de suas obsessões.
Já em seu segundo romance, De Quatro (editora Amacord, 2024, tradução de Bruna Beber), Miranda July vai além, e parece se imbricar no controverso mundo da autoficção. Afinal, é difícil não espelhar a história da protagonista, não nomeada, com a vida da própria artista. A narradora do livro é uma artista “semi-famosa”, na metade dos seus 40 anos, casada com um produtor musical e com um “filhe” de sete anos (na vida real: Miranda July tem um filho trans de 12 anos e seu ex-marido, Mike Mills, é um cultuado diretor de videoclipes). Seria justo dizer que há uma impressão de uma espécie de livros de memórias aqui, o que pode, sob certa percepção, trazer ainda mais impacto à obra.
E tal como sua autora, a personagem de De Quatro é uma mulher diante de estranhezas – internas e externas. Ela vive um casamento tranquilo com o marido, mas os dois parecem levemente afastados: dormem em quartos separados, e parecem não se importar de terem poucos compromissos em comum.
Sua rotina é organizada e sem grandes novidades. O casal se interliga, de certa forma, por um trauma: o filhe dos dois, Sam, passou por uma hemorragia fetal-materna que frequentemente mata a criança. Nossa narradora, sem respostas sobre o que aconteceu e por que seu bebê sobreviveu, sente-se solitária na sua dor e tem constantemente flashbacks com os dias difíceis enfrentados na UTI.
Mas algo está mudando, e a morosidade dessa vida pacífica aos poucos deixa de ser tolerada. Um dia, ela recebe 20 mil dólares por um motivo banal (uma empresa de uísque resolveu licenciar uma frase sua) e decide criar um projeto: o de atravessar sozinha o país, de carro, até chegar a Nova York. E é aí, nessa road trip excêntrica, que o livro realmente começa.
‘De Quatro’: um mergulho nas transformações da menopausa
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Se o livro começa meio morno, é na viagem que o estilo Miranda July de ser se manifesta. Ao invés de atravessar o país, como planejava, ela acaba parando em uma cidadezinha a meia hora da sua, e se hospedando num hotel podre de estrada. As bizarrices típicas de sua obra artística logo vem à tona: a mulher resolve usar os 20 mil dólares para redecorar totalmente um dos quartos, transformando-o em uma espécie de útero acolhedor.
A riqueza aqui é que tudo nos é entregue por essa “lupa” criativa de Miranda July, que nos convida a decifrar o mundo com olhos que rejeitam os filtros da sociabilidade padrão, internalizada por todos nós.
É nesse espaço restrito que a maior parte da ação vai acontecer. A personagem cruza então com um homem, um dançarino amador, com quem irá desenvolver uma espécie de relacionamento que foge a qualquer categorização. Mas De Quatro nos esclarece a todo instante que os desafios enfrentados por ela são internos – e, mais do que tudo, seus conflitos têm fundo hormonal.
Aos 45 anos, a personagem enfrenta a perimenopausa – o período em que os processos que levarão à menopausa causam modificações não apenas no corpo, mas na própria existência da mulher. Enfrentando um turbilhão de sentimentos, ela ressignifica aspectos da sua história familiar, ao mesmo tempo em que investiga o que restaria a ela depois da “grande queda” dos hormônios, que irão desaparecer como se escorregassem de um penhasco de uma hora para a outra (surge aqui, claro, a sensação de injustiça em relação aos homens, que não passam por isso dessa forma).
A riqueza aqui é que tudo nos é entregue por essa “lupa” criativa de Miranda July, que nos convida a decifrar o mundo com olhos que rejeitam os filtros da sociabilidade padrão, internalizada por todos nós. Ela relembra a tia e a avó, que se jogaram da janela do mesmo apartamento quando se tornaram velhas.
Sua análise é, no mínimo, provocativa: “quão louca e vaidosa uma pessoa tinha que ser para se matar depois de descobrir que sua grande motivação, o que realmente dava ânimo de viver, não existia mais? Talvez não seja tanta loucura. Se ao nascer as pessoas fossem arremessadas pelos ares, envelheceríamos conforme a subida”.
A menopausa, portanto, logo se manifesta enquanto uma oportunidade para pensar sobre a imperiosidade do desejo. A confusão hormonal a faz questionar em relação ao que acreditava. Ao se aproximar do dançarino, novas sensações vêm à tona – e ela, que sempre foi uma cabeça com um corpo, se torna um corpo com uma cabeça.
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Ela se reconecta com a sensação devastadora do desejo e da paixão, que se aproximam da loucura. “Desejar um corpo é coisa séria. Quando alguém diz que talvez nunca se recuperasse, é verdade. Este tipo de desejo abre uma ferida que a pessoa carregará pelo resto da vida”, escreve a narradora.
Arrebatador, De Quatro nos desafia a cada página e nos convida (especialmente às mulheres) a visitar nossas pulsões, tantas vezes trancadas embaixo da mente consciente. O que se pode esperar do novo livro de Miranda July são muitas elucubrações sem filtro e as cenas mais improváveis (e potentes) de sexo já narradas na literatura.
Miranda July parece nos dizer que, por vezes, perder tudo o que se tinha é um presente, e não uma maldição. “Todo mundo acha que a posição de cachorro é muito vulnerável (…) mas é uma das mais estáveis. Como uma mesa. É difícil cair quando se está de quatro”. Sorte de quem pode reconhecer isso.
DE QUATRO | Miranda July
Editora: Amacord;
Tradução: Bruna Beber;
Tamanho: 322 págs.;
Lançamento: Outubro, 2024.
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