À gama de talentos da artista multifacetada Miranda July, destacaria a que melhor se evidencia em O Primeiro Homem Mau, seu primeiro romance, lançado no Brasil pela Companhia das Letras: a capacidade de transportar o seu leitor de volta à infância, ou ao menos às linhas de raciocínio que, quando crianças, costumávamos manter. Alguns chamariam de pureza – o que, creio eu, apenas mascara a lugubridade e a esquisitice dos pensamentos que nós, o resto dos adultos, passamos a ignorar (ou censurar) depois que crescemos. Pois bem, Miranda July – com seus personagens esquisitíssimos, solitários, imersos em seus devaneios – consegue nos transportar de volta a este lugar.
Em tempo: O Primeiro Homem Mau é uma viagem ao pequeno universo de Cheryl Glickman, uma mulher de 43 anos que trabalha na empresa Open Palm, uma espécie de escola de autodefesa para mulheres que sobrevive ao investir no filão de “vídeos de ginástica de luta”. Sua rotina pessoal é enfadonha e algo triste: ela inventa um sistema de sobrevivência para não sujar a casa ou gerar incômodos, baseado em simplesmente não ter coisas novas, não ter pratos para não os sujar, comer direto da panela. Avessa à vaidade e a outros elementos supostamente femininos, ela por vezes é reconhecida pelos colegas como gay. Narrado em primeira pessoa, Cheryl parece estar profundamente deprimida, mas presa à superfície de sua rotina vazia (que não se engane o leitor: o livro é marcado por um humor algo nonsense, com várias cenas engraçadíssimas de tão ridículas).
Cheryl é apaixonada pelo colega Phillip, 22 anos mais velho que ela, que habita um lugar especial em seu imaginário particular. Ela quer acreditar – e as formas que Miranda July descreve esta ilusão são suavemente poéticas – que está casada com Philip há muitas vidas, como se fossem os primeiros homem e mulher das cavernas. A pequena coleção de significados que Cheryl dá às coisas que a cercam encontra uma fácil conexão na vida de todos os solitários, tímidos ou desencaixados deste mundo.
A multimidiática Miranda July tem como marca de sua obra a delicadeza com que observa o cotidiano e tira poesia das miudezas diárias.
Obviamente, seu miserável universo começa a ruir para que a história decorra. Isto acontece com a chegada de Clee, a filha de 20 anos de seus chefes, que passa a morar em sua casa mais por imposição que por convite. Espécie de “loira burra gostosona”, Clee é espaçosa, antipática, agressiva e define-se como misógina, e toma um grande espaço na casa de Cheryl, que começa a construir sua vida e sua rotina ao redor de sua hóspede. Por que ela não reage? O quão baixo pode chegar alguém que perde (ou cede) o respeito por si mesma?
O Primeiro Homem Mau gira em torno da profunda solidão que cerca sua protagonista, questionando os parâmetros de normalidade no que diz respeito ao autoconhecimento, dignidade, sexualidade. Cheryl é tão frágil que se torna uma espécie de refém em sua casa. Sua reação à situação que a limita, no entanto, se dá quando ela se engaja com Clee no que chama de “jogos de adultos”: elas encontram equilíbrio e alguma satisfação quando começam a reproduzir as lutas e a se agredir imitando as cenas dos vídeos da Open Palm.
O romance chega ao seu ápice justamente ao explorar a dinâmica das interações entre as personagens. A relação passivo-agressiva entre Cheryl, Clee e Phillip (não necessariamente nesta ordem) se nutre por repulsa e desejo, incompreensão e conexão absolutos. Em um segundo momento da dinâmica entre as duas mulheres, Cheryl encontra a melhor forma de obter prazer sexual: ela descobre a fantasia de “introjetar-se” no corpo de Philip e imaginar que faz sexo com Clee. Os graus de normalidade e loucura, de equilíbrio e desatino, retomam a todo instante na narrativa – mas são colocados ao leitor sem julgamento ou validações, naquela velha perspectiva do “de perto, ninguém é normal” (vale lembrar que toda a obra de Miranda July é marcada pela obsessão pela vida dos estranhos).
Absurdamente tocante, O Primeiro Homem Mau é a saga da busca (involuntária) de alguém por si mesmo, bem como a descoberta do amor maternal. A multimidiática Miranda July (apenas para elencar algumas plataformas em que ela trabalha: cinema, escultura, artes dramáticas, ficção, não-ficção, performance e criação de aplicativos) tem como marca de sua obra a delicadeza com que observa o cotidiano e tira poesia das miudezas diárias. Um dos elementos mais tocantes do livro é a presença intermitente de Kubelko Bondy: trata-se de um bebê de uma vizinha que Cheryl vê, quando ela tinha 9 anos, e sente uma conexão tão profunda que tem a absoluta certeza de que era a mãe dele em vidas anteriores. Passa a vida toda revendo Kubelko Bondy nos rostos de bebês aleatórios e mantendo longos diálogos mentais com eles.
A enternecedora caça por Kubelko Bondy – uma linda alegoria à ligação possível pelo amor – seria um título plausível a este comovente romance, que coloca Miranda July entre os autores mais proeminentes da ficção.
O PRIMEIRO HOMEM MAU | Miranda July
Editora: Companhia das Letras;
Tradução: Caroline Chang e Cristina Baum;
Tamanho: 304 págs.;
Lançamento: Junho, 2015.
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